Justiça Ambiental e Racial, por Coletivo COJOVEM e Negritar Produções

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Foto: Tuca Vieira

A exclusão tem multivozes, digo, é interseccionalizada, passa por gênero, classe, sexualidade e raça. Grupos étnicos-raciais como o povo preto, indígena e quilombola são historicamente excluídos, com consequências estruturais que enfrentamos até os dias de hoje, principalmente, nas políticas ambientais. 

RESUMO

Neste artigo, propomos lançar luz sobre as estruturas do racismo estrutural e a urgência da justiça climática. Os claros, velados, factuais e históricos desdobramentos da escravidão no Brasil serão investigados através das perspectivas pós-coloniais, que possuem significativa relevância para a compreensão do pensamento que interseciona a nossa história. Para contá-la, no primeiro tópico, discutiremos teóricos pós-coloniais; no segundo,  investigaremos a conjuntura nacional e políticas públicas que promovem o racismo ambiental no Brasil da atualidade; e, por último, se buscará valorizar a mobilização social como parte da transformação em favor da justiça climática.

As veias abertas do Colonialismo 

Abrindo alas do debate, reconhecer feridas abertas e consequências concretas que os processos coloniais afligiram às nações colonizadas é ato necessário para se pensar o passado, entender o presente e idealizar caminhos para nosso futuro. A estrutura, os efeitos práticos e todos os valores imateriais que a colonização promoveu sob as nações colonizadas permanecem vigentes na américa latina, e quando diz-se respeito ao Brasil, constatamos que tais lógicas retrógradas estão sendo promovidas por meio de políticas públicas impregnadas de marcadores neocolonialistas. 

A escolha de governos e empresas em jogar lixo tóxico em comunidades periféricas; a falta de saneamento básico, a coexistência com rios e mares poluídos e o pavor de chegar ao fim do mês sem ter renda para se alimentar ou continuar tendo um teto sob a cabeça; a exclusão digital vivenciada pelas comunidades quilombolas e demais outras que estão fora da metrópole; a presença de hidrelétricas e pólos de produção industriais em prejuízo de ecossistemas e comunidades tradicionais; a aprovação de políticas públicas de (in)segurança alimentar com pretexto do “progresso” no uso de “defensivos agrícolas” – leia-se, o Pacote do Veneno – gerando mais capital improdutivo e esfomeando milhões é, sobretudo, propositalmente direcionada por fatores como raça, gênero e classe.


Podemos aqui citar mais dados, fatos e recortes de nossa realidade para te fazer refletir sobre o presente, contudo, o caminho que propomos, neste início, é investigar a construção do nosso passado. O resultado dos 300 anos de escravidão formal, que se desdobram em os campos sociais, ambientais e econômicos da atualidade: nas relações de trabalho, de gênero, sexualidade e, sobretudo, no imaginário do ocidente, impõe esteriótipos e preconceitos às raças entendidas como não brancas.

Enquanto referência expoente das consequências do colonialismo em nosso imaginário, temos Gayatri Spivak, teórica que debruçou esforços sob valores culturais e imateriais da colonialidade no livro “Can The Subaltern Speak?”, que em tradução livre, indaga: “pode o periférico falar?”, nos apresenta como valores abstratos se desdobram nas desigualdades que persistem em anular o valor de autoafirmação de sujeites colonizades e de existência de nações consideradas periféricas pelo sistema internacional, em favor dos valores imperialistas ocidentais, no caso, Europa. Países europeus, colonizadores, sendo promotores do senso de desenvolvimento e da boa sociedade, enquanto nós, “em desenvolvimento”, nos mantendo enquanto sujeitos não-legitimados e tendo muito a aprender.

Transpondo indagações de Spivak para realidade brasileira, que tal compararmos o apelo midiático e a comoção da opinião pública dado à Guerra na Ucrânia, e a baixa relevância dada às guerras que há muito se travam entre o tráfico, as milícias e o Estado no Rio de Janeiro? Talvez indígenas Yanomami, que além de enfrentarem a subnutrição e insegurança alimentar de crianças da tribo, as tem “sugadas e cuspidas” por dragas de mineração ilegal na Amazônia? Ou, até mesmo, olhando ainda para Ucrânia, reconhecer que a comoção e solidariedade não é estendida a pessoas não-brancas, estas, impedidas de fugir do conflito, ou colocadas como os últimos a partir, inclusive depois de animais de estimação, como relata Buchizya Mseteka, porta-voz da Acnur, a agência da ONU para refugiados. 

O que esses recortes acima possuem em comum? A subalternidade dentro da estrutura racista, classista e patriarcal, reverberando na invisibilização do ser não-branco pelo Estado, mídia e sociedade: a não-permissividade para que sejam escutades e ter devidamente seus direitos garantidos pelo Estado e vida valorizada pela sociedade. O processo de invisibilização dos povos amazônidas continua sendo compulsório, e infelizmente, ainda nos relega a um lugar de subalternidade frente ao nosso próprio território. Invisibilizades ao ponto de convivermos diretamente com as consequências do que para America do Norte e Europa seria desenvolvimento, de justiça, de bioeconomia, de sociodiversidade e do que é ser bem sucedide em uma sociedade desenvolvida. Boaventura nos apresenta tal linha divisória que nos separa daqueles que são e nós que não somos, a tal dita subalternidade que nos reservou, até aqui, o silenciamento de nossos saberes, culturas e vidas. 

O racismo institucional e a injustiça ambiental  

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se […] direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” (CFB, 1988). Ainda que a Constituição de 88, também conhecida como Constituição Cidadã, tenha institucionalizado uma série de avanços democráticos, simbólicos e civis, durante nossa história, as leis brasileiras ignoraram sistematicamente o povos não-brancos, sendo o Brasil Colônia e o Estado Brasileiro principais responsáveis pelas problemáticas raciais em razão de mecanismos legais, como Lei de Terras de 1850 e a Lei da Abolição de 1888, que fraudaram a ideia de igualdade racial no Brasil.

Reconhecer na história as marcas da colonialidade geradas pelo Estado é premissa para combatermos o racismo nos diferentes aspectos que ele se apresenta, como a exemplo, no contexto ambiental. A Coalizão Negra de Direitos, durante a realização da 26° Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), afirma a inseparabilidade de raça e mudanças climáticas através de uma carta manifesto assinada por  250 organizações da sociedade civil. Abaixo, um trecho retirado da carta:  

“A crise climática é também humanitária e tem impacto direto na vida das populações negras, quilombolas e dos povos indígenas. No Brasil, a maioria populacional é negra e representa, hoje, 56% da população (IBGE, 2020). Negar o racismo ambiental é negar que o Estado brasileiro é racista; é negar a realidade da vida nas periferias das grandes cidades, o aumento da fome; é negar a violação dos direitos constitucionais de comunidades, territórios quilombolas e terras indígenas; é negar a história de urbanização do país e suas profundas desigualdades territoriais” 

Seguindo a narrativa da carta, o negacionismo vigente do governo brasileiro desembocam em fortes discursos anti-ambientais, desmontes de políticas e dos órgãos ambientais. Grande parte do que ocorre vem por meio de decretos e medidas provisórias, eliminando debates públicos e no parlamento federal. Outrora ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles foi expoente claro da lógica neocolonial no comando da pasta. Em meio ao terror de uma pandemia que nos ceifou vidas, Salles expressou publicamente, em suas falas, o modus operandis de exploração de riquezas e socialização das desgraças, através do dito “Vamo passar a Boiada”, que evidencia o descaso e o projeto claro de destruição de nossas florestas em favor do capital. 

Passando com a boiada, o neocolonialismo ganha espaço através de políticas públicas, tais como, por exemplo, o Projeto de Lei 191/2020, que regulamenta a exploração de recursos minerais em reservas indígenas. Segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento do Imazon, em dezembro de 2020, os satélites registraram 276 km² de devastação, um recorde de dez anos, ou seja, projetos que venham a permitir a mineração e exploração em terras indígenas, resultam apenas no aumento do desmatamento da Amazônia em favor de mineradoras estrangeiras.

Tendo em vista tudo que foi exposto, atrelado aos outros diversos exemplos de desmonte aqui não explorados, se faz necessário que o Estado possa ser questionado e cobrado para  que o Brasil possa controlar possíveis retrocessos. O papel da sociedade civil organizada é essencial para isto.

Coletivos em movimento por uma R-existência amazônida


Todos nós temos o direito de exercermos nossa liberdade de expressão e de reivindicação através da mobilização cidadã, independente do gênero, raça, sexualidade, situação financeira ou religião que tenhamos: todos nós estamos defendidos sob a mesma constituição. Essa garantia é o resultado prático de mobilizações históricas, de brasileires que deram suas vidas para que tenhamos uma vida digna, na qual podemos exercer e reivindicar nossos direitos fundamentais, com o amparo da Constituição Cidadã de 1988. Mesmo que essas conquistas tenham sido alcançadas, firmadas através da nossa constituição e protegida pelas instituições públicas, ainda existem pessoas, opiniões e ideologias que acreditam que tudo isso não passa de “mimimi”. Que (r)existência de direitos atrapalham a economia, e que, para facilitar, o ideal é mudar tudo isso que tá aí. 

Cuidar do meio ambiente é necessário para garantir uma vida digna, assim como o direito a um meio ambiente justo e equilibrado é um direito garantido pela nossa constituição, Art. 225, Caput, CF: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Movimentos transgeracionais se mobilizam em defesa de uma Amazônia viva com diferentes vozes e saberes, reivindicando existências plurais de ser e estar em conexão com a Terra. Contrariando o movimento de aniquilamento de corpos indígenas, negros e quilombolas, expandem conexões e firmam que não só existimos como resistimos, altivos, vivos e mais fortes, como  estímulo à mobilização social que requer uma dedicação contínua e produz resultados quotidianamente.

A convergência de coletivos e projetos prova que juntes somos mais fortes, mais conscientes de si e dos nossos em coletividade e harmonia. A circularidade de saberes em movimento, também tem a nos ensinar sobre pedagogias da esperança e de porvir que exaltam os saberes ancestrais. Precisamos ocupar espaços institucionais de representatividade e de poder para remodelar a estrutura a favor da justiça climática. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Temos que nos conscientizar que debater o racismo é algo desinteressante ou perigoso apenas a quem se favorece do mesmo. O custo de seu não reconhecimento é a manutenção de estruturas que propagam o racismo em âmbitos pessoais, sociais, coletivos e institucionais, agindo em nossas vidas brutalmente e com caráter de perseguição de identidades amazônidas e a violação de direitos.

É preciso conhecer o passado, para agir conscientemente no agora em virtude de um futuro que exige consciência crítica e decolonial. Reconheçamos como a história veio sendo feita e quais são suas possibilidades de renovação para alcançarmos um objetivo em comum, sem deixar ninguém para trás.

REFERÊNCIAS

Água. Instituto Trata Brasil,  Disponível em: <https://tratabrasil.org.br/pt/saneamento/principais-estatisticas/no-brasil/agua>. Acesso em 2 de março de 2022.

DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA CRESCE 30% EM 2020 E BATE RECORDE DOS ÚLTIMOS DEZ ANOS. Disponível em: <imaginei.org.br/imprensa/desmatamento-na-amazonia-cresce-30-em-um-2020-e-bate-recorde-dos-ultimos-dez-anos/>. Acesso em 5 de março de 2022.

Toro AJB, Werneck NMD. Mobilização social: um modo de construir a democracia e a participação. Belo Horizonte: Autêntica; 2004. 

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Can the subaltern speak?. Die Philosophin, v. 14, n. 27, p. 42-58, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do sul. In: Epistemologias do Sul. 2010. p. 637-637.

ONU-HABITAT BRASIL REÚNE DESAFIOS E CONQUISTAS DE 2020 EM RELATÓRIO ANUAL. Nações Unidas, 2021. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/137253-onu-habitat-brasil-reune-desafios-e-conquistas-de-2020-em-relatorio-anual.> Acesso em: 04 de março de 2022.

Por Mattheus Oliveira Silva, Embaixador da Juventude – UNODC/ONU, Cofundador da Cooperação da Juventude Amazônida para o Desenvolvimento Sustentável (COJOVEM) e atualmente Coordenador de Engajamento e Articulação Social no programa Maré tá pras Juventudes, que objetiva contribuir na construção da consciência crítica e democrática da juventude paraense, estimulando a defesa dos territórios amazônicos que envolva e priorize os povos amazônidas no cenário político, econômico, social e ambiental.

Por Tay Silva, graduanda em História pela Universidade Estadual do Pará, traço diálogos com projetos e pesquisa voltado para a cultura, arte e saberes da Amazônia. Sou integrante da produtora Negritar Filmes e Produções e coordenadora de comunicação do Telas Em Movimento.

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