Espaços públicos para adiar o fim do mundo

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Fonte: Urban 95 para Archdaily, 2021.

Resumo

Oi pessoal, 

Chegamos ao fim do último ciclo do Projeto Belém 40º, tratando de um dos nossos assuntos preferidos: os espaços públicos. Isto porque é nesses lugares que as conexões acontecem, onde se vive a cidade, onde as movimentações sociais, políticas e culturais ganham vida. Estamos muito felizes com todo o conhecimento adquirido e compartilhado até aqui e, para finalizar este ano de construção coletiva de aprendizado, pedimos à nossa equipe editorial para escrever, a partir do seu ponto de vista, o que não pode faltar na construção de espaços públicos sustentáveis, democráticos e resilientes. Por isso, nessa breve despedida, trazemos, não um, mas três textos com abordagens distintas: que tratam de direito à natureza, segurança e pertencimento e de como a ótica das crianças pode transformar espaços públicos em locais mais saudáveis. Os resultados vocês podem ler abaixo. Agradecemos por nos acompanharem até aqui. Até breve.

Isabela Rocha – Coordenadora de Pesquisa no projeto Belém 40º.

Espaços de direito à natureza (Por Sâmyla Blois)

O professor e pesquisador Henri Acselrad identificou, a partir do Relatório Brundtland em 1987, diversos grupos de pesquisadores que buscavam entender o que era o “desenvolvimento sustentável” e a “sustentabilidade urbana”. Assim, ele dividiu os grupos em matrizes, dentre elas, a matriz que entende a cidade como espaço de qualidade de vida, sendo objetivo do planejamento urbano a intervenção na microescala da cidade e na sua forma urbana, articulando estratégias de preservação e fortalecimento do sentimento de pertencimento dos habitantes. Além disso, outra matriz compreende a cidade como espaço de legitimação das políticas urbanas, buscando estratégias de planejamento voltadas para a sustentabilidade urbana, entendendo assim que a insustentabilidade urbana é resultado da incapacidade das políticas urbanas adaptarem a oferta de serviços urbanos à quantidade e qualidade das demandas sociais.

Partimos, então, do fato de que as cidades amazônicas são parte da Amazônia, assim sendo, carregam culturas, valores e relações pré-existentes ao modo de produção da cidade atual. Não obstante, constatam-se diversos modos de vida na região metropolitana de Belém, tanto da parte insular quanto continental, com diferentes arranjos populacionais que mesclam a vida cotidiana com a natureza, cumprindo função socioambiental viabilizando a coexistência entre preservação ambiental, ocupação humana e atividades produtivas. Contudo, essa relação tem sido invisibilizada e pressionada pelo processo de urbanização, o qual nega a biodiversidade e as relações entre o habitante, o clima e a natureza. Por isso, as referências de planejamento e organização do espaço urbano das cidades amazônicas não devem entender os elementos naturais como obstáculos, como é a realidade, e sim compreendê-los como parte inseparável da resiliência e sustentabilidade urbana. 

Lugares como a Ilha do Combu, na parte insular de Belém, e o município de Afuá, localizado no arquipélago do Marajó, ensinam como os saberes culturais e o respeito às relações dos habitantes com a natureza, proporcionam espaços de convívio mais adaptados e sustentáveis. Em ambos, as estruturas são feitas de palafitas, uma técnica registrada em diversas comunidades indígenas Brasil afora, mas que aqui carregam os traços da cultura amazônida, refletindo na composição do espaço e na função dessas estruturas. Em Afuá, muitas palafitas guardam as sedes comunitárias, que reúnem a população para eventos coletivos. Já na Ilha  do Combu, o espaço de encontro, lazer, contemplação e reunião dos moradores é o campo de futebol, próximo ao rio, que permite que todos, independente da idade, possam interagir e realizar seus eventos. Uma relação parecida com a comunidade que mora próximo ao rio Tucunduba, na periferia de Belém.

Assim, estes são bons exemplos de como se relacionar com o espaço público de forma mais harmônica e respeitosa com a natureza, nos quais podemos observar para ver o que pode ser adaptado a espaços urbanos já consolidados, seguindo a ideia de que na concepção de espaços públicos, é preciso respeitar a relação sociobiodiversa estabelecida naquele lugar, proporcionando espaços públicos mais resilientes, sustentáveis e adaptados às mudanças climáticas. 

Espaços públicos de pertencimento e representatividade (Por Augusto Junior)

Para muitas pessoas, o espaço público representa hostilidade, incerteza e exclusão. Isso porque andar ou estar na rua pode representar não apenas desconforto, mas muitos riscos de vida, principalmente àqueles que são historicamente ameaçados por preconceitos, ataques e perseguições induzidas por uma não aceitação do outro. Os altos índices de violência direcionados à  comunidade LGBTQIA+ têm evidenciado espaços públicos cada vez mais nocivos – e a partir disso, então, tem-se a necessidade de repensá-los. Num contexto de cidades que não configuram ruas em que os grupos LGBTI+ se vejam convidados e pertencidos, a criação de locais para encontros de pares, para a ressignificação das trocas sociais, é um passo importante para que os espaços públicos da cidade promovam mais pertencimento e afeto a quem se vê vulnerabilizado nesse contexto.

Como pensar em espaços que promovam mais pertencimento? Como pensar em lugares de encontro, do convite ao estar, ao invés da expulsão? É nesse contexto que o “Homomonument”, espaço construído em Amsterdã, propõe, ao somar arquitetura patrimônio e memória, um lugar de convívio que marca o chão da rua, mas ultrapassa a esfera física, palpável, ao criar um modelo de espaço simbólico. 

Homomonument. Amsterdã. Wikimedia commons.

O lugar levanta pautas políticas e sociais ao homenagear gays e lésbicas perseguidos e atormentados na época que o regime nazista ocupava a Holanda. Os triângulos de tecido rosa utilizados pelos nazistas para demarcar e expor pessoas homossexuais inspiraram a geometria do chão, que demarca uma ressignificação simbólica da comunidade que passa a enxergar o triângulo como símbolo de resistência. O espaço tornou-se um memorial que é ativado como lugar de encontros, reuniões, manifestações políticas, entre outras utilizações. Tudo isso demonstra que os espaços públicos são capazes de oferecer não só melhorias infraestruturais, mas também autoestima, possibilidades para novos vínculos sociais, e que seja através da memória, do pertencimento e da representatividade. 

O olhar das crianças para espaços públicos saudáveis (Por Julia Ladeira)

Uma das pautas que vem ganhando força e coro ao redor do mundo é o protagonismo das crianças na reinvenção das cidades e seus espaços públicos. Vimos aqui no blog sobre a importância de trazer o olhar dos pequenos para a tomada de decisões no planejamento urbano. Crianças não devem ser vistas como simples agentes passivos diante dos desafios que enfrentamos em buscar espaços mais resilientes. Elas também possuem experiências, ideias, pontos de vista e habilidades. Elas também sofrem com os efeitos das mudanças climáticas. Crianças precisam de espaços públicos seguros, verdes, acessíveis e lúdicos. Portanto, incluí-las no processo de criação conjunta dos espaços públicos beneficia toda a comunidade, que terá, além de espaços de qualidade, mais indivíduos conscientes do seu papel em um mundo que precisa do esforço coletivo para se transformar.

Vamos ver alguns bons exemplos de espaços públicos feitos para e com crianças?

O Japão e a autonomia das crianças

Com um planejamento urbano que prioriza a escala humana e pensa na infância, além de um forte senso de comunidade criado desde cedo, as crianças japonesas são conhecidas pela sua independência. Não à toa, há uma série na Netflix chamada “Crescidinhos” que aborda justamente esse assunto. Além da autonomia de caminharem até as suas escolas e demais atividades cotidianas, as crianças também aprendem sobre a responsabilidade em relação aos espaços públicos, a mantê-los limpos e organizados para o usufruto de todos.

Para entendermos esse processo na prática, conversamos com a Bianca, brasileira de Manaus que se mudou para Tóquio, capital do Japão, em 2006 e hoje possui uma conta no Instagram chamada “Conhecendo Japão” onde fala sobre o seu dia a dia, viagens, curiosidades e desafios enquanto mãe. Bianca tem dois filhos, um de 4 anos e outro de 7 e contou um pouco para gente como é a realidade das crianças onde mora: “As crianças aqui no Japão são incentivadas a irem e voltarem da escola sozinhas com 6, 7 anos, quando entram na escola primária. Muitas ruas têm proteção para que as crianças se limitem a atravessar a rua somente na faixa de pedestre e para protegê-las dos carros que possivelmente possam perder o controle. Onde moro é bem voltado para famílias com filhos, então há muitos parquinhos. Em vez de ter um parque enorme, geralmente são vários parquinhos pequenos, às vezes só com um escorregador e um espaço para brincar, em diferentes pontos. A pé, eu consigo ir andando da minha casa até, mais ou menos, sete parquinhos.”

Ela também acrescentou que “eles se sentem muito seguros e confiantes. Até o meu filho de 4 anos já quer ir sozinho para a escola. Eles adoram os parquinhos e nem precisam ser enormes, cheio de brinquedos, só um espaço para jogar bola ou andar de patinete já está ótimo.” E sobre a manutenção física dos espaços públicos, disse que “é mantida pela prefeitura de Minato-ku (local em que ela reside), que sempre está fazendo inspeções, mas o povo japonês já tem toda uma consciência de cuidar do que é público, reforçada pelas escolas. As crianças têm o costume de limpar as salas de aula, cuidar do que é usado por todos também.” Reforçando a educação ambiental e responsabilidade social reforçada desde cedo aos pequenos.

Minecraft como ferramenta para criação de espaços públicos

A ONU Habitat, um programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos e desenvolvimento urbano sustentável, busca lidar com os desafios do processo de urbanização acelerada que ocorre nas cidades e vêm desenvolvendo métodos de desenho urbano centrados na participação comunitária. Um dos trabalhos realizados pela organização é o de projetar espaços públicos para e com crianças que vivem em áreas marginalizadas do seu território. Os projetos buscam criar espaços sustentáveis, vibrantes e que envolvam os jovens desde as primeiras tomadas de decisões, trazendo-os ao protagonismo da cidade e criando lugares que não existiam antes para eles.

Para isso, a ONU Habitat formou uma parceria com a Microsoft e a Mojang, criadora do jogo Minecraft, e, juntos, criaram a fundação Block by Block, com objetivo de ensinar as comunidades a criar projetos usando como ferramenta o próprio jogo Minecraft. Por ter uma interface simples e fácil de usar, pessoas de qualquer idade tem capacidade de utilizá-lo.  O seu uso auxilia o desenvolvimento e a visualização em três dimensões da potencialidade dos espaços, dando vida às ideias que surgem da comunidade. Isso faz com que o processo participativo seja mais efetivo. Um dos projetos que utilizou essa estratégia foi o do Rayerbazar Boishakhi Playground, em Bangladesh, no processo de criação de um parque para crianças, jovens e famílias de baixa renda que vivem na região e não possuíam espaços públicos de qualidade.

Projeto em Minecraft do Rayerbazar Boishakhi Playground, Bangladesh. Imagem: ONU Habitat.
Rayerbazar Boishakhi Playground. Foto: ONU Habitat.

Coletivo CoCriança

Um coletivo de mulheres, criado em 2017, a partir de um trabalho para uma disciplina da FAU-USP e um olhar atento para a falta de participação e inclusão das crianças no planejamento urbano. De acordo com o coletivo, a sua metodologia “caminha da investigação e reconhecimento do mundo dessas crianças e da sua visão sobre ele, ao entendimento de desejos e concepção de projetos para os espaços que utilizam, bem como à sua participação na transformação urbana, a partir de sua concepção como sujeitos ativos.” Através do contato com as crianças e realização de oficinas de co-criação e lúdicas, desenvolvem um trabalho de escuta ativa onde auxiliam as crianças a organizarem uma opinião crítica sobre o espaço que vivem, melhorando sua percepção cidadã.

Referências

A evolução urbana de Belém:trajetória de ambiguidades e conflitos socioambientais por Ana Claudia Cardoso e Raul Ventura Neto 

(https://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/view/15816/11840)

Tipologias espaciais da várzea amazônica: Estudo morfológico de assentamento em Afuá (pa) por Letícia Vicente e Ana Claudia Cardoso.

(https://drive.google.com/file/d/13wYgwcf0MSR4HyHshnogmwZBEfHLNUmS/view)

Discursos da sustentabilidade urbana por Henri Acselrad

(https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/27/15

A Cidade Invisível. Uma reflexão sobre o direito à cidade para comunidades LGBTQIA+ – Laboratório da Cidade (laboratoriodacidade.org)

Homomonument: a importância de um espaço de representatividade na cidade | ArchDaily Brasil

Cidade, identidade e os lugares de memória | Revista Unimontes Científica

How to Design Spaces for Kids in Marginalized Areas? 3 Examples from UN-Habitat | ArchDaily

A Mojang, Microsoft, and UN-Habitat Collaboration — Block by Block

Promove aprendizagem vivencial que valoriza a voz da criança na cocriação de espaços de brincar inovadores (cocrianca.com.br)

Por Sâmyla Blois. Graduanda e PIBIC de Arquitetura e Urbanismo. Extensionista do Urbana Pesquisa. Estagiária do Laboratório da Cidade na área de pesquisas em sustentabilidade e espaços urbanos dos projetos Belém 40° e Cidade da gente. Integrante do Coletivo Quintas Pretas.

Por Augusto Junior. Arquiteto e Urbanista. Assessor de Projetos no Laboratório da Cidade.

 Por Julia Ladeira. Arquiteta e Urbanista. Graduanda de Comunicação Social – Jornalismo pela UFPA. Voluntária no Laboratório da Cidade.

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