Por que é preciso lutar pelos espaços públicos?

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Intervenção no Telégrafo. Fonte: Acervo do Lab da Cidade, 2022.

RESUMO

Oi gente,

Estamos dando início ao quinto e último ciclo temático do projeto Belém 40°, no qual iremos discutir a relação entre os espaços públicos e as mudanças climáticas e como estes são importantes na luta pela resiliência urbana e combate às consequências negativas da ação do homem que afetam o clima global. Espaços públicos representam uma importante pauta para o direito à cidade, uma vez que são palcos de construção de tecidos sociais e dinâmicas diversas. Neste artigo, tratamos da importância dessas áreas para as cidades e seus habitantes e de como a presença ou ausência delas pode impactar a qualidade das cidades como um todo e as vidas de seus usuários. Trazemos para o foco, também, o contexto de Belém (Pa) porque sabemos que, para nos tornarmos uma cidade mais sustentável, é essencial conhecer o contexto que nos cerca, e que a construção da sustentabilidade começa nos espaços públicos.

Boa leitura,

Sâmyla e Isabela,

A relevância dos espaços públicos para as cidades

Espaços públicos são, naturalmente, locais de encontro. São essenciais para as cidades, uma vez que, neles, acontecem movimentação econômica, conexão entre pessoas, manifestações políticas, culturais e festas. Cidades que oferecem bons espaços públicos aos seus habitantes são mais saudáveis e há maior senso de pertencimento dentre suas comunidades. Podemos afirmar que o caminho inverso também é verdadeiro: quando há participação do usuário nas tomadas de decisões sobre o desenho e uso desses locais, o cuidado e a preservação deles tornam-se prioridades e demandas da própria população.

Por qual motivo, então, estamos assistindo nossos espaços de convívio dando lugar a áreas privatizadas, cercadas por muros, que pouco se relacionam com o entorno e criam ambientes artificiais? Por qual motivo, praças, parques e equipamentos públicos que promovem encontros, ficam concentrados em áreas centrais das cidades, enquanto são raridade em periferias? Por que, a cada dia que passa, só quem tem acesso a espaços públicos de qualidade é quem pode pagar por eles? 

Ora, primeiro, precisamos entender que essa divisão desigual vem se desenhando desde as primeiras cidades que deram origem às que conhecemos hoje. De acordo com Lefebvre, nas primeiras cidades arcaicas (gregas e romanas) das quais partem as sociedades e civilizações ocidentais, já existia uma livre minoria com poder sobre outros membros da cidade: mulheres, crianças, escravos e estrangeiros. Uma forma de associação considerada uma democracia, mas com elementos estreitamente hierarquizados e submetidos às exigências da unidade da própria cidade, o que Marx chamou de Democracia da não liberdade.

Acontece que essa cidade pensada por e para apenas uma parcela pequena da população acaba dando lugar a espaços excludentes e que, quase que por regra, relacionam-se de forma predatória com os recursos naturais e com o entorno. A cidade que tem a cara do capitalismo não tem espaço para diversidade de pensamentos, vivências e soluções construtivas, desenvolvem-se projetos urbanísticos espetaculares e absurdos para absorver o excedente de capital de forma socialmente injusta e ambientalmente nociva, a exemplo de grandes símbolos como Dubai onde existe uma pista de esqui no meio do deserto, exemplo citado por David Harvey em Cidades Rebeldes (2012). 

Somando-se aos problemas sociais, esse modelo de cidade está levando nossos recursos naturais ao esgotamento e os efeitos da crise climática já são sentidos no dia-a-dia de milhares de pessoas nos espaços urbanos, como já tratamos. É lógico que quem mais sente é quem está na base da pirâmide, geralmente excluído das tomadas de decisão, também por isso, a compreensão de que as cidades não pertencem exclusivamente aos grupos de pessoas que estão no poder se faz urgente. O espaço urbano é lugar de disputa de interesses sociais e políticos e, parafraseando Harvey, precisamos entender a exigência fundamental daqueles que constroem e mantêm a vida urbana sobre o que eles produziram: o direito de criar uma cidade mais em conformidade com seus verdadeiros desejos. 

Espaços públicos são áreas fundamentais para as cidades, porque além de oferecerem áreas permeáveis, arborizadas, que proporcionam qualidade de vida aos seus usuários, são os lugares em que a vida nas cidades acontece, e nós podemos começar a construir resiliência e sustentabilidade urbana frente à crise climática a partir deles. Por isso, agora, trataremos do contexto de Belém, para conhecermos os nossos desafios como cidade amazônida.

                                                                                                   

Espaços públicos em Belém: Como estamos?

Fonte: Sâmyla Blois. 2022.

Por meio do processo de formação e metropolização de Belém, é possível identificar como a paisagem natural e cobertura vegetal foram reduzidas e negligenciadas em prol de interesses econômicos e imobiliários através do constante aumento de impermeabilização e construções, promovendo supressão de áreas vazias e verdes, canalização e estrangulamento dos cursos d’água e o deslocamento da população para áreas marginalizadas e adensadas, sem acesso à infraestrutura urbana. Enquanto na 1ª légua patrimonial o adensamento urbano foi se intensificando e suprimindo as áreas verdes, na 2ª légua patrimonial (área de expansão) a produção do espaço urbano ocorreu de forma tão rápida que acarretou em desatenção aos espaços públicos, falta de investimentos em infraestrutura urbana e consolidação de uma estrutura viária pouco eficiente. O resultado disso é o prejuízo às condições de permeabilidade do solo, afetando o fluxo hídrico nas cheias e chuvas aumentando a ocorrência de alagamentos e enchentes em diversos bairros da região, mas principalmente nos bairros periféricos. 

Além disso, essa constante supressão de áreas verdes resulta na diminuição da qualidade de vida e no aumento de calor pela cidade. Isso porque a Sociedade Brasileira de Arborização Urbana (SBAU) recomenda um mínimo de 15m² de área verde pública por habitante destinado a cumprir plenamente sua função social e ambiental de fornecer bem-estar, recreação, isolamento acústico, microclima, entre outros. Contudo, o arquiteto e urbanista Thales Miranda identificou que, conforme a mancha urbana da RMB aumentava, a cobertura verde reduzia, afetando principalmente a saúde das bacias hidrográficas da região, como demonstra as tabelas abaixo:

Autor: Thales Miranda (2020)
Porcentagem de Cobertura Vegetal das Bacias Hidrográficas da Primeira Légua Patrimonial de Belém e Área de Expansão Metropolitana de Belém respectivamente.

Ainda, as pesquisadoras Fernanda Moreira e Maria Isabel Vitorino analisaram a cobertura vegetal na mancha urbana de Belém em 2017, e identificaram que 80% da área total corresponde a solos expostos, entre solos desmatados e impermeabilizados. Como consequência, tem-se diferenças discrepantes das temperaturas em diferentes pontos da cidade, uma vez que nas áreas urbanizadas com presença de áreas verdes como praças e parques e arborização nas ruas, a temperatura marcou mínima de 24°C e máxima de 26°C, um cenário completamente diferente das áreas de intensa urbanização no centro e na área de expansão da cidade de Belém, as quais marcaram mínima de 30°C e máxima de 36°C. Essa diferença  apenas será alarmada no contexto de mudança climática, já que o IPCC (2021) identifica que o aumento de 1,5°C na região Amazônica já é inevitável. 

Autor: Thales Miranda (2020)
Processo de redução da cobertura vegetal entre 1984 e 2018 na Região Metropolitana de Belém

A perda de espaços públicos, ainda, reflete-se na negligência do direito à cidade principalmente às populações marginalizadas. Enquanto a cidade vive uma hegemonia de espaços privados, condomínios e lotes murados, as periferias e baixadas perdem importantes pontos de contato, lazer, práticas esportivas e espaços culturais que impactam na qualidade de vida e no desenvolvimento desses bairros, além de serem as principais vítimas de enchentes e estarem mais vulneráveis aos riscos associados às mudanças climáticas. A falta de espaços públicos na região metropolitana de Belém afeta toda a população de forma desigual, reforçando injustiças sociais e climáticas existentes e sobrepujantes aos diversos espaços da RMB, visto que mesmo que as bacias hidrográficas não sigam divisões políticas, a gestão de águas e espaços verdes está atrelada ao poder aquisitivo e classes dominantes da região.

Os desafios para mudar de cenário

Muito se fala em cidades sustentáveis a partir do desenvolvimento tecnológico. Smart cities, carros elétricos, soluções em forma de aplicativos para problemas causados pelo nosso desenvolvimento urbano disfuncional. Os custos desse tipo de solução são altos e reforçam a velha lógica: quem tem direito a cidades sustentáveis, acesso aos serviços e qualidade de vida é quem pode pagar, a lógica é a mesma na escala global e na escala do indivíduo. Como vimos acima, o acesso a áreas verdes e espaços públicos de permanência como praças e parques pode ser muito desigual entre dois indivíduos que moram numa mesma cidade, e um fator determinante é o acesso à renda e quem tem maior renda é quem está com o poder de tomada de decisão nas mãos. Este ciclo precisa ser alterado, uma vez que, o primeiro passo para alcançar essa sustentabilidade urbana é a redução de desigualdades.

Um caminho viável para cidades de fato resilientes é a participação comunitária ativa e efetiva no planejamento e desenvolvimento de cidades por meio de modelos inovadores de escuta e inclusão da população nas tomadas de decisão. É necessário que a população esteja tão envolvida no processo de produção de cidades quanto os agentes públicos e privados atualmente estão, de forma que a cultura, os saberes e as demandas dessa comunidade sejam atendidas nos projetos. 

Além disso, é urgente que a sociedade civil assuma o compromisso de defesa dos seus territórios diante do contexto de mudanças climáticas, de forma a pressionar e garantir que haja um planejamento adequado para a mitigação dos efeitos negativos das mudanças climáticas nas áreas urbanas, especialmente devido à falta de espaços públicos. Nós do Laboratório da Cidade assumimos o compromisso de divulgar conhecimento científico sobre resiliência urbana dentro do panorama climático atual e acreditamos que cidades sustentáveis podem e devem ser pensadas em praça pública. E você? o que tem feito pela garantia da resiliência urbana em seus espaços?

Referências

O Direito à Cidade. Henri Lefebvre (1968)

Cidades Rebeldes. David Harvey (2014).

Relação de áreas verdes e temperatura da superfície para a cidade de Belém por Fernanda Moreira e Maria Isabel Vitorino (https://periodicos.ufpa.br/index.php/pnaea/article/view/12145/8355)

Soluções baseadas na natureza: quadro da ocupação da cidade de São Paulo por células de biorretenção por Pereira, M. C. (https://www.revistas.usp.br/revistalabverde/article/view/189292/178435
A ilusão da igualdade: natureza, justiça ambiental e racismo em Belém por Thales Miranda (https://drive.google.com/file/d/1UU9SJ131vPc3ppwhRK6FMm0xEk3gsahk/view)

Por Sâmyla Blois. Graduanda e PIBIC de Arquitetura e Urbanismo. Extensionista do Urbana Pesquisa. Estagiária do Laboratório da Cidade na área de pesquisas em sustentabilidade e espaços urbanos dos projetos Belém 40° e Cidade da gente. Integrante do Coletivo Quintas Pretas.

Por Isabela Avertano Rocha. Urbanista e Arquiteta. Especialista em Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente. Mestra em Desempenho Ambiental e Tecnologia. Integrante do Coletivo Cidade para Mulheres. Diretora Executiva no Laboratório da Cidade. Colunista e curadora de conteúdo do Blog do Lab.

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