Fazendo lugares: Placemaking para espaços públicos mais democráticos, sustentáveis e resilientes

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Projeto Ocupa Tu Barrio – Paseo de la fama Inka. Foto: Arturo Diaz Quiroz (Ocupa Tu Calle)

Resumo:

Vimos até aqui a importância que os espaços públicos têm nas cidades e porque precisamos pensá-los e criá-los para serem, em sua essência, sustentáveis e democráticos. Agora, iremos falar sobre uma das muitas estratégias existentes, o Placemaking, que visa conectar pessoas aos espaços, criando, assim, lugares. Esse movimento ultrapassa os limites físicos do espaço e envolve parâmetros como sociabilidade, usos, atividades, acessos, conexões, conforto e imagem. É um método “mão na massa” feito para melhorar as condições de vida de uma vizinhança, cidade ou região,  em um processo que inspira pessoas a imaginar aquele lugar coletivamente e reinventar os espaços públicos que são essenciais para o seu bem-estar. A base desse movimento é a participação.

Para falar sobre Placemaking e espaços públicos na América Latina, entrevistamos Leonardo Brawl Márquez, brasileiro, ativista social, urbanista e arquiteto, co-fundador do coletivo de inovação social e urbana TransLAB.URB e da rede autônoma de placemakers do Brasil e Mariana Alegre Escorza, peruana, professora, ativista social, diretora executiva do projeto “Lima Cómo Vamos” e fundadora da estratégia de criação de espaços públicos “Ocupa Tu Calle”. Leia as entrevistas a seguir!

Julia Ladeira

Sobre a formação dos espaços públicos na América Latina.

Mariana: Vou começar falando sobre os espaços públicos em si. A primeira e mais importante questão, do ponto de vista na nossa experiência com o projeto “Ocupa Tu Calle”, é a nossa percepção de que a construção do espaço público pelas comunidades é um fenômeno que acontece desde sempre na nossa região. Justamente pela falta de verbas e de planejamento urbano formal. É por isso que muitas pessoas, comunidades e favelas, por exemplo, são construídas por elas próprias, pelas próprias mãos. Na América Latina, esse é um processo comum de construção do habitat, dos arredores das casas, é tudo feito principalmente pela população local. Portanto, eu penso que antes de falarmos em técnicas como de urbanismo tático, Placemaking ou outras ferramentas, nós precisamos direcionar nossa conversa para o fato de que os processos de formação dos espaços públicos latino-americanos são inerentemente atrelados aos seus povos, suas comunidades. Eles não precisavam de técnicas específicas ou arquitetos para construir esses espaços. Foi a necessidade que iniciou esse processo. A necessidade de espaços públicos para melhoria das suas condições de vida e, claro, para o usufruto dos benefícios que trazem à população.

Sobre Placemaking

Gráfico com os parâmetros norteadores do Placemaking. Fonte: Project for Public Spaces.

Léo: Bom, tratar de cidades e das últimas décadas de urbanização é um campo cheio de desafios, incluindo o desafio de se autodefinir enquanto disciplina, abordagem, metodologia etc. Desde meados da década de 70, o Placemaking vem se construindo nesse não-lugar de ser ao mesmo tempo um processo e uma filosofia que lida com a construção de uma visão coletiva para um território a partir e de maneira conjunta com a comunidade local. De maneira geral é processo de desvendar como um “espaço” pode se transformar em um “lugar”, algo mais ou menos como entender a diferença entre “casa” e “lar”. E é neste sentido que o processo inicia na observação, na formulação de perguntas e na escuta ativa para a comunidade, de modo a encontrar os atributos que constituem essa sensação de estar num “bom lugar”, e não em um espaço qualquer. Como parte das ferramentas desenvolvidas e aprimoradas por “fazedores de lugares” ao redor do mundo, temos o diagrama que ajuda a identificar, avaliar e responder o quão bom é um lugar, a partir de quatro atributos chaves: Sociabilidade, Usos e Atividades, Acessos e Conexões, Conforto e Imagem, seguidos dos seus respectivos atributos intangíveis e indicadores mensuráveis. Acredito que em termos de rede global uma ferramenta como essa é uma maneira potente de promover intercâmbios de conhecimentos sobre o que entendemos sobre a produção de cidades, inclusive porque os elementos que compõem o diagrama são colocados à prova em diferentes realidades sócio-econômicas e culturais, exigindo adaptação e a própria evolução deste instrumento.

Ocupa Tu Calle”e o ativismo Peruano para além do Placemaking

Mariana: Aqui no Peru, nas décadas de 60 e 70 do século XX, quando as migrações da população do campo para as áreas urbanas se intensificaram e o governo adotou uma postura muito mais neoliberal com uma visão econômica voltada para o individualismo, os presidentes começaram a mudar as políticas públicas, sem foco em criação de habitação, apenas entregando títulos de propriedades, terras etc. A partir daí, o governo se tornou muito mais afastado e ausente do processo de criação da cidade e da sua organização. Mesmo que tenha acontecido há um bom tempo atrás, em 2014 quando nasceu o projeto “Ocupa Tu Calle” e iniciamos um trabalho com uma ideia de espaços públicos democráticos, recuperando esses espaços para as pessoas, incluindo escala humana e outras questões, outros movimentos também surgiram. Alguns eram mais focados em mudanças políticas, outros mais orientados para questões locais na escala da vizinhança, e ainda tinham os mais artísticos. Eu considero que a partir daí houve uma espécie de explosão de movimentos ativistas em prol dos assuntos da cidade, incluindo espaços públicos e também habitação social. Porém, não posso dizer que esse foi um movimento exclusivo de Placemaking, no sentido do termo trazido pelo modelo norte-americano. É muito mais orgânico. Não necessariamente conectado a um processo de storytelling. Acredito que essa seja a diferença. Isso não significa, claro, que não existam movimentos trabalhando com essa característica de intervenções com processos mais rápidos. Mas, no caso do Peru, é algo mais abrangente do que um grupo de arquitetos dispostos a criar espaços fotogênicos. É mais elaborado que isso. Dentro da  perspectiva do “Ocupa Tu Calle”, por exemplo, nós estamos mais alinhados com objetivos focados em políticas públicas e mudanças de práticas privadas.

O papel dos espaços públicos na construção da resiliência urbana

Léo: Cada espaço público possui o papel de desenvolver o seu potencial de ser o lugar de convergência de uma impressionante seção transversal de questões locais e globais, como os temas relacionados direta ou indiretamente com a resiliência. O espaço público serve para transmitir nossa indignação e nossas maiores aspirações, bem como para estabelecer as utilidades e infraestruturas mais mundanas. E quando permitimos, o espaço público pode ser um meio de criatividade, expressão e experimentação. 

Mariana: Os espaços públicos são o coração das cidades e, também, os espaços mais democráticos. E quando digo espaços públicos aqui, me refiro ao seu conceito mais amplo, incorporando não somente parques e praças, mas também ruas, calçadas etc. Portanto, espaços públicos sempre foram o elemento central na vida das pessoas. É onde elas se encontram, trabalham, relaxam e se reúnem. É uma infraestrutura viva, preenchida por qualquer que seja a finalidade de uso dessas pessoas em um determinado momento e tempo.

Placemaking como estratégia para mitigação da vulnerabilidade socioambiental

Léo: Os espaços públicos são os locais onde ocorre a negociação da interface entre aquilo tudo que é pessoal, privado e íntimo, com tudo que é público e coletivo, como nossos negócios, nossas instituições e o mundo em geral. Idealmente, esta negociação tem que ser mediada, e é assim que o Placemaking se apresenta como possibilidade. Há dez áreas temáticas na agenda global dos placemakers que acreditamos que o Placemaking pode ter o impacto mais transformador e relacionado com a vulnerabilidade socioambiental: 1) equidade e inclusão; 2) ruas como lugares; 3) arquitetura do lugar; 4) pólos de inovação; 5) mercados municipais; 6) governança do lugar; 7) sustentabilidade e resiliência; 8) comunidades rurais; 9) placemaking criativo; e 10) saúde. Alguns exemplos práticos dessa agenda são os programas de capacitação para melhoria dos mercados municipais, focados na identificação dos melhores atributos locais, incentivo às feiras de comida de rua e de produtos diretos dos produtores. Os programas de criação e gestão de hortas comunitárias, o desenho de mobiliário urbano que contempla as populações em situação de rua e se opõe ao design hostil, programas de criação de equipamentos públicos voltados à inovação cidadã de bairro (laboratórios cidadãos), oposto aos programas puramente mercadológicos dos centros de startups, criação e difusão de manuais de boas práticas para a governança em escala de bairro, cidade para a primeira infância etc. Vale ressaltar que a costura política e a envergadura do movimento global colocam as boas práticas do Placemaking nas mesas de debates de pautas mundiais como o futuro pós Covid, Agenda 2030, Peacemaking para áreas com crises de refugiados, Conferência Mundial de Saúde Urbana, Play Africa, Fórum Mundial Urbano entre outros. Por fim, o Placemaking funciona como uma plataforma cujos processos acolhem diferentes metodologias, ferramentas e até movimentos, potencializando-as para que sejam experiências construídas com as comunidades, indo além das soluções de projeto.

Placemaking e as mudanças climáticas

Léo: Para explicar como é a formada a nossa rede, nós temos o Placemaking Brasil (uma das pioneiras em ser rede autônoma local lá em 2014, atualmente existem vários países que têm suas redes, continentes e até regiões, como Oriente Médio), Placemaking Latino América (super forte, formada na metade de 2017) e a rede global PlacemakingX (formada em 2019). O Placemaking atua simultaneamente em duas esferas, uma prática e de intervenção física e outra processual e filosófica, buscando promover ações de curto prazo e alto impacto, bem como mudanças estruturais de médio e longo prazo. A partir do exercício coletivo e colaborativo, a rede Placemaking global difunde e incentiva as boas práticas relacionadas ao enfrentamento das crises multidimensionais relacionadas às mudanças climáticas. Politicamente, estamos construindo e impulsionando uma agenda comum que coloca “o lugar” (espaços públicos) como um meio pelo qual é possível abordarmos mais fundamentalmente problemas e oportunidades distintas. Acreditamos que esse foco compartilhado muda nossas relações humanas, nossos padrões de urbanização e nossa capacidade coletiva de enfrentar desafios em várias escalas. Como resultado, a maneira como moldamos nossas comunidades pode afetar a vida das pessoas de várias maneiras.

Mariana: Os espaços públicos possuem um papel importante na construção de justiça social e no preenchimento de lacunas que existem quando se trata de desigualdade. É por isso que a maioria dos investimentos públicos deveriam ser voltados para áreas em que a desigualdade social está mais presente, para impactar positivamente esses locais e melhorar a qualidade de vida. Isso é muito importante. Em termos de resiliência e mudanças climáticas, nós trabalhamos com o “Lima Cómo Vamos” e o “Ocupa Tu Calle”, visando a criação de comunidades e oferecendo ajuda na resolução dos problemas que elas enfrentam.

Quer saber mais sobre os projetos dos nossos convidados? Acesse:

translab.urb (translaburb.cc)

Ocupa tu calle | Urbanismo Ciudadano


Mariana Alegre faz parte da Loeb Fellowship da escola de design da universidade de Harvard (2022/23). Possui mestrado em Design de Cidades e Ciências Sociais pela London School of Economics and Political Science (LSE). Estudou Direito na PUCP. Desde 2010, é Diretora Executiva do Observatório Cidadão Lima Como Vamos, de onde contribui para a melhoria da qualidade de vida urbana. Fundadora da estratégia Ocupa tu calle que busca recuperar e gerar mais espaços públicos. Está co-construindo o NODAL – Urban Nodes of Latin America, um espaço cooperativo e autogerenciado para ajudar a formar a Nova Geração Urbana da região. Todas essas iniciativas são gerenciadas pelo Sistema Urbano, um ecossistema de projetos urbanos com o objetivo de acelerar a transformação positiva de nossas cidades e territórios.

Leonardo Brawl Márquez é Ativista Social, Urbanista, Arquiteto, Designer de Processos Cívicos, Placemaker e Músico. Co-fundador do coletivo TransLAB.URB e do Instituto de Pesquisa em Inovação Social – Translab (rede internacional de Laboratórios Cidadãos). Co-fundador da Rede Brasileira de Urbanismo Colaborativo, Placemaking Brasil e dos projetos Raíz Urbana (rede FAO-ONU) e Corredor Sur. Faz parte das redes Placemaking LatinoAmérica, Jane’s Walk, PlacemakingX, CivicWise, BrCidades e Frena La Curva.

Edição e transcrição por Julia Ladeira. Arquiteta e Urbanista. Graduanda de Comunicação Social – Jornalismo pela UFPA. Voluntária no Laboratório da Cidade.

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