AS VIVÊNCIAS DE GÊNERO NA CIDADE PELA ÓTICA DA ARTE URBANA

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Fonte: Marahu Filmes / Thiago Pelaes (Artista Carla Cris Duncan na Semana de Arte e Muralismo)

RESUMO

Quando a cidade é pensada, projetada, liderada e governada por homens, ela se torna um espaço, consequentemente, habitado apenas por eles. A construção de um local planejado apenas por e para essa pequena -e privilegiada- parcela da população, nos traz como consequência, a exclusão e privação das mulheres no seu direito de ir e vir, nos fazendo sofrer diariamente consequências da imposição e resistência de nossos corpos pela rua. A punição do patriarcado é muito particular, pois conforme sua cor, classe social, fenótipo, estilo de vida, profissão, orientação sexual, dentre tantas especificidades, nos é ditado por onde, que horas e como podemos transitar pelos espaços urbanos, nos tirando direitos de cidadãs.

Dessa forma, no núcleo da arte não é diferente, pois, devido a privação da circulação das figuras femininas como protagonistas de espaços como museus e galerias, sem que precise emprestar seus corpos retratados nus e sexualizados, para telas e fotografias de autoria masculina, nos leva a invisibilização de artistas na história da arte. Agora nos encaminhando para um cenário onde unimos os corpos femininos nas ruas, sendo elas criadoras e protagonistas de artes muralistas com cunho político, conseguimos formar um cenário ainda mais difícil. 

É sobre esta perspectiva da vivência de mulheres na arte urbana que nos debruçamos neste artigo, originado da pesquisa “Mulheres e Muros” feita em maio de 2021, em parceria e a convite da arquiteta e urbanista Carolina de Pinho de Belo Horizonte, pesquisadora entusiasta do tema, junto com o coletivo Cidade para Mulheres, que abrimos o tema equidade de gênero no Cidade da Gente.

GÊNERO E O DIREITO À CIDADE

A cidade como palco de encontro e vivências entre os diferentes grupos, é o reflexo das diversas estruturas sociais que formam a sociedade. Sua construção e transformações, já que o ambiente construído está em constante adaptação às necessidades culturais, econômicas e sociais de cada povo, também refletem as estruturas de poder.  Segundo Falú (2010), mulheres e homens vivenciam a cidade de forma diferente. E o direito à cidade não é exercido da mesma maneira por todos. Historicamente, mulheres são alvos de opressões tanto no meio privado quanto no público, tendo suas vidas pessoais e profissionais limitadas. Para tentar mudar essa realidade, a Nova Agenda Urbana-2016, tem como um dos objetivos para o desenvolvimento urbano sustentável o alcance da igualdade de gênero nas cidades. A Nova Agenda Urbana incentiva que o governo, em todas as esferas, assim como a sociedade civil sejam partes ativas na busca no desenvolvimento sustentável, para que:

Empoderem todas as mulheres e meninas, garantindo a participação plena e efetiva das mulheres e direitos iguais em todas as áreas e em funções de liderança em processos decisórios em todos os níveis; garantindo emprego decente e remuneração igual para trabalho igual ou de igual valor para todas as mulheres; e previnam e eliminem todas as formas de discriminação, violência e assédio contra mulheres e meninas em espaços públicos e privados. (ONU – HABITAT, 2016, P. 13.)

Para Lefebvre (2001), o Direito à Cidade aborda a vida urbana, a condição do humanismo e ressalta que a simples visita ou o entorno aos centros urbanos não configura como efetivo ou uma efetiva participação democrática na cidade. Para o autor, a cidade tem como função social ser um espaço democrático para as intervenções artísticas urbanas como demonstração da liberdade democrática, é um local de encontro que pode ser potencialmente conflituoso pois abrange diversas ideologias e posicionamentos políticos, como a convivência de diferentes classes e grupos sociais. 

Para além da experiência ao vivenciar a cidade entre homens e mulheres serem diferentes, juntamente com as opressões e violências de gênero sofridas, o planejamento das nossas cidades e as discussões em seu entorno acontecem em sua maioria por homens e pela visão destes do ambiente construído, como elucidado pelo Guia Prático e Interseccional Para Cidades Mais Inclusivas (2021) do Banco Interamericano de Desenvolvimento:

“O setor de planejamento urbano e demais ambientes profissionais são ocupados, principalmente, por homens. Mesmo que as mulheres tenham cada vez mais acesso a estes espaços, é importante lembrar que muitos dos Planos Diretores das cidades e políticas urbanas atuais, foram elaborados por homens que pensaram a cidade de acordo com uma lógica econômica, que valorizam as atividades de produção, trabalho e consumo. Estes esquemas continuam a ser reproduzidos posteriormente em espaços acadêmicos e profissionais. A lógica de zoneamento urbano, que separa fisicamente as diferentes atividades na cidade, é um exemplo perfeito da valorização da lógica econômica dentro dos Planos Diretores. Essa lógica deixa, parcial ou totalmente, invisíveis ou dificultam as atividades de reprodução realizadas com maior frequência pelas mulheres, e consequentemente separadas das atividades produtivas, as quais geram algum valor econômico.” (Guia Prático e Interseccional Para Cidades Mais Inclusivas (2021) do Banco Interamericano de Desenvolvimento).

Fonte:: https://cura.art/index.php/portfolio/criola/ 

MULHERES NA ARTE

O empoderamento feminino tem como premissa afirmar que através da igualdade social, política e econômica entre os sexos é possível chegar a uma sociedade mais igualitária para todas e todos, onde o fator biológico não seja um fator pré-determinante para moldar a sociedade e os aspectos sociopolíticos e econômicos. A desigualdade entre homens e mulheres está inserida em diversos aspectos da vida social. Ainda que no meio artístico seja considerado um ambiente mais liberal e igualitário, não obstante perpetuam múltiplas ações de cunho sexista, precarizando a representatividade, dificultando oportunidades de trabalho, a visibilidade e a projeção de projetos de mulheres. 

Para Brand (2006), a marginalização intencional dos trabalhos de mulheres no mundo da arte é visto como uma forma de manutenção do Status quo. A autora analisa que, ao longo da história da arte, aquelas obras que estão na lista das obras-primas são raras as que são de autoria de mulheres. Brand (2006) justifica que historicamente é compreensível visto que as mulheres passaram por uma série de restrições sociais contra suas carreiras e as aspirações artísticas, a qual foram negadas por décadas o acesso à educação e treinamento. Além de serem barradas em diversos círculos importantes de discursos críticos que recompensam obras de arte e renome (BRAND, 2006).

Ainda em conformidade com Brand (2006), outra problemática é a de que a maioria das representações visuais de mulheres são criadas por homens, estes que ao fim e ao cabo recaem no padrão artístico do que é ser mulher. Nesse sentido, a autora alerta que é necessário olhar para o conteúdo da arte produzida por artistas contemporâneos masculinos e femininos, e como os seus significados refletem as visões e opiniões populares. Brand (2006) exemplifica que as obras de arte que, não apenas são criadas por homens, também retratam os homens de formas bastantes diferentes das mulheres (BRAND, 2006).

De acordo com Brand (2005), as mulheres continuam lutando para terem respeito comparável aos homens dentro da cena artística e, para além, no ambiente sócio-político. Com a pretensão de erradicar esse preconceito no mundo da arte, existem iniciativas que objetivam promover a arte de mulheres e, também, a crítica do uso do corpo da mulher como arte no sentido pejorativo.

O Guerrilla Girls é um coletivo que passou os últimos 30 anos expondo as desigualdades de gênero e raça na arte, política e cultura. A apresentação “ É ainda pior na Europa”, que foi lançado na Whitechapel Gallery, em Londres (2016), demonstra a análise feita pelo coletivo em  cerca de 400 museus e 29 países do continente europeu e almeja demonstrar a incompetência do trabalho dos museus no que se refere a representação de mulheres e pessoas de cor (FULLERTON, 2016).

De acordo com Kathe Kollwitz (pseudônimo), os números são muito baixos e não são diversos. Ela ressalta que a problemática de muitos museus que estão tentando se atualizar está ligada ao fato de que as suas coleções -as quais muitas começaram há muitos anos- são compostas da maioria de artistas brancos. Em adição, Frida Khalo (pseudômino) afirma que a ideia do coletivo é assustar essas instituições para que as mesmas possam se conscientizar e mudar seus modos (FULLERTON, 2016).

Direcionando a lente para o Brasil, Sylvia Miguel (2017) analisa a história da arte no país e compreende que a mulher brasileira, em uma análise global, teve mais espaço no meio do que em outros países. Artistas como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Lygia Clark, Lygia Pape, Tomie Ohtake, Maria Bonomi, Regina Silveira, Djanira e outras, possuem um espaço não apenas na cultura e, também no mercado internacional, o que para a autora demonstra que o cenário brasileiro difere-se do cenário internacional, por exemplo: Estados Unidos onde as mulheres tiveram que lutar para conseguir expor suas artes em museus, galerias, mídia, público e crítica (MIGUEL, 2017).

Entretanto, Miguel (2017) observa que essa vantagem aparente que se tem no cenário brasileiro está ligada à perspectiva histórica e que essa não reflete a situação atual. A professora Ana Paula Simioni, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, aponta alguns indicadores do mercado da arte e de museus para elucidar a sua pesquisa. Simioni analisou as exposições do MAC – Museu de Arte Contemporânea – como a coleção Freitas Vales, a Pinacoteca, o Inhotim, a Coleção Mário de Andrade e os resultados apresentados foram que no MAC dos 113 expositores, 7 eram mulheres, resultando 6,19% da exposição. Na Pinacoteca,  dos 1588 expositores, 321 eram mulheres, cerca de 20%. No Inhotim, 22 mulheres de 99 expositores, 22, 22% do acervo. E na coleção Mário de Andrade 22 mulheres de 135 expositores, 17 % do acervo (MIGUEL, 2017). Dessa forma, podemos entender que apesar da arte ser considerada globalizada e democrática, nem sempre a arte feminista tem espaço.  

PESQUISA “MULHERES E MUROS” – A RELAÇÃO DAS ARTISTAS COM A RUA

Na pesquisa feita de forma online, em maio de 2021, que nomeamos de “Mulheres e Muros”, procuramos levantar a experiência desses corpos femininos transitando pela arte urbana e entender o papel da mulher no muralismo, de forma que esses dados nos sirvam de embasamento para abrir essa discussão e levar a consciências das dificuldades enfrentadas por cada mulher e sua individualidade.

Como mencionado anteriormente, apesar da arte, principalmente a arte urbana e muralismo, carregar consigo o ativismo e luta pelos direitos de uma sociedade vivida de forma mais democrática, tendo em vista que a história do muralismo no México, no início do século XX, foi originada com cunho político e social em meio a Revolução Mexicana, não foi um meio que escapou das raízes patriarcais e machistas que a sociedade carrega. Ainda mais, se tratando de um corpo feminino como protagonista e posto de forma não transitória no espaço público,  mesmo que por um curto período. Esses corpos farão daqueles dias de trabalho sua estação de trabalho na rua, em situações temidas por tantas, justamente pelo histórico de tratamento que temos nesse ir e vir na cidade projetada sem diversidade.

Isso posto, em nosso mapeamento, por meio da  colaboração de 36 mulheres artistas, obtivemos como resultados a participação de 33 brasileiras, uma estadunidense, uma chilena e uma argentina, todas residentes no Brasil. A maioria residentes nas cidades de São Paulo (SP) e Belém (PA), sendo as residentes nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste as maiores participantes dessa pesquisa.  As participantes correspondem  à faixa etária entre os 16 e 50 anos, destacando-se, como maioria, as de 23 a 31 anos, em sua  maior parte, por mulheres cis, com  participação de apenas uma mulher trans e duas não binárias. Em relação à raça, as informações recebidas foram, em maior parte, de  mulheres brancas (58,3%), com a participação de mulheres negras (27,8%), amarelas (8,3%), indígenas (2,8%) e pardas (2,8%), com experiências temporais variadas, com um arco de atuação nas artes que varia de 6 meses a 20 anos. 

Elas relatam que se locomovem, em sua maioria, por transporte público (36,1%), mas também de carro  (16,7%), bicicleta (13,9%), andando (13,9%), e uma minoria por outros meios como moto ou carona. Como  barreiras enfrentadas na cidade ao praticar a arte urbana relatam, em primeiro lugar, a segurança, mas levantam outras problemáticas como viabilidade de local, assédio, a falta de representatividade, a desvalorização desse trabalho feito por mulheres, a discriminação, e questões financeiras, por se tratar de um material de valor elevado e pouco acessível para pessoas de poder aquisitivo baixo. 

Dentre vários relatos, trazemos três que reforçam a vulnerabilidade do corpo feminino no espaço urbano:

O relato de uma das artistas diz que “Ser mulher e ocupar esses espaços é ter que ser firme e manter postura para que seu espaço não seja invadido e haja respeito…É entender que, ao mesmo tempo que precisa ter coragem para enfrentar a rua, precisa ter todo o discernimento para se preservar.”, uma segunda detecta essa problemática interferindo no seu processo de aprendizado e comenta:  “sinto que meu processo de evolução no graffiti é muito mais lento que o dos meus amigos grafiteiros por praticar menos, mas pratico menos porque tenho medo de estar na rua sozinha..”, já uma terceira artista nos traz sua forma de lidar com essa estrutura machista e fala que  “O apoio ajuda a evitar o assédio e as críticas sobre o nosso trabalho (sobre questões estéticas) que são tão comuns..” e mostra que se utiliza de uma rede de apoio de outras e outros como subterfúgio para não desistir e resistir como artista urbana.

As situações sexistas vividas por mulheres, no meio artístico, não se restringem aos espaços de trabalho. “O espaço urbano, seja público ou privado, serve como cenário físico e cultural onde essas formas de violência acontecem, onde são vividas e sofridas” (ANA; FALÚ, 2010, p.16). Sendo assim, as mulheres artistas sofrem com a violência de gênero também nas cidades, palco dos seus trabalhos e vivências pessoais. O que dificulta uma maior participação destas na cena da arte urbana e também nos espaços de socialização, de trocas e de exercício da cidadania. Não exercendo por completo o direito à cidade e sua profissão devido às questões de gênero. Ser mulher, artista, e unir essas duas coisas nas ruas de nossas cidades é resistir. Repensar a cidade pelas óticas de todos os corpos que circulam e que se utilizam dela para sua arte e profissão, buscando nessa interação uma ferramenta de transformação, para que as cidades se tornem muito mais democráticas e sustentáveis, e tornando possível uma horizontalidade da autonomia de tudo que nos é de direito nesses espaços públicos. 

REFERÊNCIAS

BID, Guia Prático e Interseccional Para Cidades Mais Inclusivas (2021) do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

BRAND, P. Feminist Art Epistemologies: Understanding Feminist Art. in Hypatia: A Journal of Feminist Philosophy (21:3; Summer, 2006), pages 166-189. 

FALÚ, A. MUJERES EN LA CIUDAD: De violencias y derechos. Santiago de Chile: LOM Ediciones, 2019. 

FULLERTON, Elizabeth. It’s a Corrupt System and It’s Becoming More Corrupt’: The Guerrilla Girls Arrive at the Whitechapel Gallery in London. Disponível em: <http://www.artnews.com/2016/09/30/its-a-corrupt-system-and-its-becoming-more-corrupt-the-guerrilla-girls-look-at-discrimination-in-european-museums/>. Acesso em: 29 de maio de 2018.

LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2011.

MIGUEL, Sylvia. Representatividade feminina no sistema artístico precisa ser mais bem avaliada. Disponível em: http://www.iea.usp.br/noticias/representatividade-feminina-no-sistema-artistico-precisa-ser-melhor-avaliada>. Acesso em: 02/06/2018.

ONU – HABITAT. Nova Agenda Urbana 2016. Disponível em: http://habitat3.org/the-new-urbanagenda. Acesso em: 30/09/2020.

MARTÍNEZ, Zaida; CASANOVAS, Roser; CIOCOLETTO, Adriana; FONSECA, Martha y VALDIVIA, Blanca. Qué aporta la perspectiva de género al urbanismo?. Universidade Politécnica de Cataluña. 17 de junho de 2011.

SANTORO, Paula. Gênero e planejamento territorial: uma aproximação. Caxambú – MG. Setembro de 2008.

FREITAS, Nathália. Grafites feministas: espaços de luta e resistência na arte urbana. Goiânia – GO. 2019.

Por Carolina Pinho, Arquiteta e Urbanista pela UFMG, com especialização em Gestão de Projetos. Atualmente atuando com regularização fundiária urbana e rural (REURB) na Prefeitura Municipal de Patos de Minas (MG). Curiosa e apaixonada por arte, arte urbana e planejamento urbano sustentável, pesquisadora entusiasta dos temas.

Por Jade Silva Jares, curadora, arquiteta e urbanista. Especialista em Design de Interiores, Arquitetura e Iluminação e pós graduanda em Museologia, Colecionismo e Curadoria. Integrante do coletivo Cidade para Mulheres. Gerente do Projeto Cidade da Gente no Laboratório da Cidade. Co fundadora do Vila Container e Galeria Azimute, e idealizadora da Semana de Arte e Muralismo. Busca aplicar a arte urbana como instrumento transformador da cidade.

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