DEIXAR MORRER E FAZER VIVER

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Foto: Arte de Viviane Lira, 2020.

Com a notícia da COVID-19 espalhando-se pelo mundo, imaginava-se que o Continente Africano, com 55 países, sendo 54 reconhecidos internacionalmente, e um pouco mais de um bilhão de habitantes, seria o mais atingido pela doença.

Quase três meses após o primeiro caso confirmado, o segundo continente mais populoso do mundo continua a ter um número relativamente baixo de infecções e mortes em comparação com outras regiões do planeta, o vírus se multiplicou mais lentamente na África do que na Ásia ou na Europa.

No momento, os países do continente relataram um total de 119.982 casos confirmados e 3.599 mortes, de acordo com uma contagem da Agência Reuters – dados colhidos até a data de escrita deste texto. A maioria dos casos tem registro no Egito, na Argélia e na África do Sul, destinos dos mais procurados por turistas no continente.

Alguns fatores são destacados nesse combate: reação rápida das autoridades; experiência com epidemias – como malária, cólera, tuberculose, HIV e ebola, havendo já protocolos e entendimento populacional da necessidade de seu cumprimento -, e o fato de ser um continente menos globalizado, com menor circulação turística.

Juntamente com a epidemia, estamos diante de uma linha política evidente em alguns países no mundo: a chamada necropolítica – política da morte. Tal linha de pensamento tem como grande estudioso o filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe. Significa, em termos gerais, a política centrada na produção da morte em larga escala, que determina quais sujeitos devem morrer e quais têm o direito à vida. “Deixar morrer e fazer viver”.

Atravessando o oceano, estamos vivendo algo inédito à nossa geração no Brasil. Só não imaginávamos que esse ineditismo pandêmico culminasse com a adoção de medidas do poder público brasileiro que podem ser taxadas como genocidas. A conduta do Estado, no que tange a política da pandemia, mostra-nos a interpretação dos princípios constitucionais e das políticas públicas baseadas na necropolítica, não importando quem vai morrer – mas sabemos quem – e quantos morrerão.

O atual Presidente da República chegou ao posto máximo do país com um discurso que, entre outros pontos, defendia pautas como mais armas, mais dinheiro para grandes empresários, menos direitos trabalhistas e menos políticas sociais. Além disso, no contexto da crise provocada pelo Coronavírus, parte expressiva da elite nacional, representada por grandes empresários, afirmou publicamente que a economia não deve parar só porque cinco ou sete mil pessoas vão morrer. Já estamos em mais de 34 mil mortes.

É importante entendermos que isso não é uma novidade no Brasil. Há anos existe uma violência contra nós, a violência da exploração, da retirada de direitos, da geração de desigualdade, da falta de soberania nacional perante às pressões imperialistas do sistema internacional. No entanto, neste momento, estamos observando atitudes dolosas do Estado as potencializando.

O chefe do executivo atenta contra mulheres e homens pobres das periferias desse país, majoritariamente pretos e pretas, que sobrevivem em milhões de domicílios em aglomerados subnormais, locais adensados em áreas urbanas com falta de infraestrutura, saúde e saneamento.

São as comunidades periféricas que enchem os leitos dos hospitais públicos e que são mais vulneráveis à contaminação pelo fato de usarem transportes coletivos lotados, morarem em áreas com precária infraestrutura urbana, ou, então, dependerem do comércio informal para seu sustento. No discurso e ações governamentais, é evidente que matar ou deixar viver constitui os limites da soberania, seus atributos fundamentais, como analisa sempre de forma precisa em suas falas e textos o Prof. Dr. Aiala Colares Couto.

Fatores de raça e classe não andam separados. São resultado da estrutura social, por todo o processo histórico e político. O Estado não tem esse alcance. A política da morte não se faz só com arma apontada, somente com a ação. A omissão, a falta de políticas públicas, tem sido a maior das causas. E mata, diretamente, pretos e pobres.

Em contraponto à preocupação com o potencial alto número de mortes de pretos no Continente Africano, aqui no Brasil estamos morrendo mais, até o momento, tanto em número absoluto quanto por milhão de habitantes. Um verdadeiro genocídio da população negra. E quem fala sobre?

A pandemia, juntamente com a política da morte diária, tem potencializado as questões raciais. O assassinato de George Floyd, nos EUA, fez eclodir manifestações em diversos países, mas não nos esqueçamos do nosso território, das nossas periferias, das Marielles, Agathas e João Pedros, que são assassinados a cada 23 minutos no Brasil.

A periferia não vive a cidade.

A cidade não olha a periferia.

A periferia não é foco de políticas públicas.

As políticas públicas não atingem a população preta.

Mais cidade para a periferia. Mais cidade para a população preta.

O desenvolvimento urbano está indo para que direção?

Quem direcionará essas políticas?

Por Paulo Victor Squires. Advogado; Ativista; Membro da Comissão de Defesa da Igualdade Racial, Etnia e dos Quilombolas da OAB/PA – (2013 – 2017); Vice Presidente e Relator da Comissão Estadual da Verdade sobre Escravidão Negra no Brasil do Conselho Federal da OAB – (2015 – 2016); Pesquisador das Relações Raciais; Estudou na África do Sul em 2018.

Artigo revisado e editado por Toni Moraes – Monomito Editorial para Laboratório da Cidade.

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