Como construir cidades melhores através da participação

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Foto: Placa com dizeres “A Cidade é nossa”, produto da Oficina Cidades Desejáveis. Fonte: Acervo Laboratório da Cidade.

Como fortalecer a democracia começando por nossas cidades?

Alguns países possuem uma cultura de participação muito forte. Nos Estados Unidos, por exemplo, 97% dos governos locais realizam consultas periódicas junto à sua população com o objetivo de aprovar ou definir um projeto, seja ele público ou privado. No caso da Nova inglaterra, região americana que abrange os estados do Maine, Vermont, Nova Hampshire, Massachusetts, Connecticut e Rhode Island, estas escutas municipais datam da década de 1630 e são parte intrínseca da cultura local.

Contudo, esse processo tem sido cada vez mais desafiado, seja pelo modelo de desenvolvimento chinês – pautado em resultados e crescimento constante, atropelando processos que em países democráticos levariam mais tempo para serem aprovados – seja pela onda de insatisfação global, que tem elegido lideranças que, se não desprezam o processo democrático, testam de forma sistemática os limites das instituições.

No Brasil, como em muitos outros casos, o buraco é mais embaixo. O processo amplo de participação previsto em nossa Carta Magna, que inclui as audiências públicas e mesmo um processo participativo de desenho, por exemplo, do plano diretor urbano de nossas cidades, é visto pela maioria dos gestores como um contratempo, uma mera formalidade a ser cumprida da forma mais esterilizada possível. Nossos gestores, e mesmo grandes setores da nossa sociedade, desprezam a participação da sociedade civil, alegando que, além de atrasar o processo, essas participações não produzem resultado decisório e são frequentemente utilizadas de palanque eleitoral.

Porque a colaboração na escala da cidade é importante?

Você consegue lembrar de alguma iniciativa da sua prefeitura ou governo estadual que você achava uma ideia incrível e que hoje não existe mais? Muito provavelmente essa iniciativa, que mudava a vida das pessoas, deixou de acontecer por questões políticas e não técnicas. Era, provavelmente, uma boa ideia, mas não contou com a participação da sociedade no seu desenho ou implementação. Quando o novo prefeito ou governador entrou, ela foi abandonada. A participação e apropriação de iniciativas positivas podem contribuir para a continuidade de políticas públicas acertadas.

O contrário também é válido. Num ambiente em que a cultura da participação se faz presente, os próprios usuários finais podem identificar mais rapidamente se aquela política não funciona e deveria passar por ajustes ou mesmo ser cancelada.

Para irmos além, por que esperar a política ser executada e deixar que o orçamento seja desperdiçado? Por que não desenvolver melhores diagnósticos dos nossos problemas ao envolver no processo aqueles que sofrem com o problema diariamente? Diagnóstico mal feito é uma das principais causas de fracasso em projetos. A participação, ao contrário do que se pensa hoje, pode contribuir para aumentar a eficiência do gasto público.

Há, ainda, o entendimento de a cidade ser um campo cheio de dados. Diferentemente do que se pensa, não só os técnicos possuem e constroem informações competentes sobre a cidade, a população é capaz de levantar seus próprios dados particulares, de maneira eficaz. Quantas vezes não vemos espaços públicos serem readaptados por moradores? Essas pessoas são, geralmente, aquelas que vigiam, habitam e participam do espaço, e, assim, são os que possuem dados que só quem vive em tal lugar conhece.

Por que, então, não congregar os pensamentos técnicos e o conhecimento daqueles que vivem a rotina e desafios da cidade? Aí mora a importância da colaboração: não é apenas sobre a inclusão da população num processo passivo de escuta, mas a possibilidade da inserção da sociedade no processo de ação a favor de mudanças.

O que há de errado com a colaboração hoje?

O processo de escuta e diálogo para com a sociedade parece não ser repensado. A participação, muitas vezes, resume-se a reuniões e audiências que geralmente seguem o modelo plenária, no qual todos ficam calados enquanto a pessoa que tem o microfone tem o direito de voz. Geralmente, quem pede a fala são as pessoas mais apaixonadas pelo tema. Não há nada de errado em ser apaixonado por algo, ainda mais temas de interesse público, acontece que, nesse processo, apenas as vozes mais exaltadas são ouvidas. Em agravante, o governo local tende a sequestrar o debate ao enviar uma quantidade desmedida de funcionários para essas reuniões. É assim que essas audiências viram um teatro premiando aqueles dispostos a fazer grandes discursos de impacto.

Enquanto isso, a maioria da população, que comumente não se sente detentora de domínios e falas para as discussões, acaba tendo uma postura mais moderada. Essa população raramente acredita que sua participação pode desencadear consensos na resolução de questões.

Há ainda mais complicações nessa dinâmica. Primeiro, a maioria dos presentes são pessoas que estudam ou têm algum ativismo relacionado ao tema da reunião (não sendo necessariamente funcionários públicos). A sociedade como um todo permanece sem voz. Em segundo, a ausência de um resultado concreto, fruto de extenso debate sobre o tema. Eis o que acontece: a oportunidade de fala é restrita a uma minoria, muitos ficam calados, passam-se horas e, de repente, a reunião se apressa ao fim, sem a garantia de que aquilo que foi debatido será levado em consideração, ou mesmo de que houve alguma conclusão.

A colaboração, dessa forma, não é dada de uma maneira eficiente, de modo que o setor público dialogue diretamente com as ânsias, desejos e sugestões da sociedade. Assim, os interesses diversos acabam sendo pouco mediados e, por isso, a vontade de grupos específicos acaba se sobrepondo a outras. Enfim, é uma ilusão de participação.

Como podemos construir uma cidade de forma colaborativa?

Como permitir a participação democrática no processo de tomada de decisão? A rede brasileira de urbanismo colaborativo (da qual fazemos parte) certamente tem muito a dizer sobre isso, inclusive com métodos incríveis desenvolvidos pelos amigos do @acidadeprecisadevc, @translab.urb, @courb e @coletivomassape. Mas, seguindo a filosofia do urbanismo tático, vamos começar pequeno: como mudar hoje a forma como promovemos participação?  

  1. Não comece com uma grande reunião. O estado e a sociedade precisam criar uma relação de confiança, antes de chamar todos para discutir, converse com a comunidade, escute, entenda seus medos, problemas e potencialidades, convença a sociedade de que dessa vez é pra valer, ela terá sua voz ouvida. Muitas reuniões individuais precisam acontecer com as lideranças envolvidas e com o usuário do dia a dia, os verbos para essa fase são: observação, imersão e discussão.
  2. O dia e horário da reunião não devem ser decididos por técnicos em suas salas, mas sim por quem será escutado. Quantas vezes você teve que participar de sessões de audiências públicas, conselhos ou reuniões no ministério público em dias e horários impossíveis para o trabalhador participar? 
  3. Pense nas crianças. muitas pessoas deixam de ir para reuniões públicas porque precisam cuidar de seus filhos; garanta um público diverso ao oferecer um espaço para as crianças brincarem (e se você realmente for a favor de mais democracia, desenvolva processos de escuta das crianças também, afinal, uma cidade boa para crianças é uma cidade boa para todos).
  4. Escolha com cuidado o tema e a escala da reunião. Às vezes, fazer audiências públicas para um projeto e consultar a sociedade de forma segregada pode ser um tiro pela culatra, moradores de classe média podem se opor ao desenvolvimento de um projeto de habitação de interesse social, como acontece no Projeto de Intervenção Urbana (PIU) da Vila Leopoldina, em São Paulo. A primeira consulta pública desse projeto nos proporciona um belo exemplo de not in backyard (NIMBY), que significa “não no meu quintal”, uma prática de exclusão promovida geralmente por moradores de classes mais abastadas, aqui você pode conferir um trecho de uma audiência desse projeto, que mostra os problemas de uma audiência pública clássica. Promover uma reunião do PIU em que participassem todos os atores envolvidos foi a estratégia da prefeitura para atenuar a oposição ao projeto e permitir que os diversos interesses fossem conhecidos por atores diferentes.
  5. Mude o formato. Abandone o modelo de “nós os técnicos sabemos mais do que vocês, comunidade” (aproveite e diminua o máximo possível o modelo de plenária), se você estiver no caminho certo, as reuniões servirão para receber a impressão da sociedade sobre os seus projetos e não para debates extensos. Uma saída pode ser criar um ambiente de feira de ciência, várias mesas com temas diferentes, em que as pessoas possam se sentar, conversar sobre o tema e fazer sugestões.
  6. Uma reunião é realmente necessária? Em alguns casos podem ser usadas outras formas de ouvir a sociedade: o urbanismo tático, por exemplo, pode ser usado em pequenos projetos, inserindo a comunidade no processo de intervenções temporárias no espaço público. Reformar um canteiro, criar mobiliário, dar soluções práticas, baratas e eficientes, além de incluir a comunidade nesse processo de transformação do espaço público, tudo isso pode criar muito mais diálogo, escuta e sentimento de pertencimento do que uma reunião em um auditório com 400 pessoas.

O que podemos concluir desta discussão?

É preciso admitir a diversidade ao invés da seletividade. Comecemos por aí. É fundamental admitirmos processos abertos, de participação popular eficiente, ao invés de sistemas em que só uma minoria influente é levada em conta. Não vamos resolver todos os problemas de representatividade, mas pensar na cidade é um início. A prática da colaboração não mira grandes resultados (apesar deles serem bem-vindos), mas a oportunidade de enxergarmos novas possibilidades para a realidade urbana, sobretudo na maneira com que participamos das decisões que são públicas. Admitir a diversidade é admitir visões diferentes, técnicas ou não, que, congregadas, podem provocar estratégias inovadoras.

A desigualdade influencia a crença de participação, a democracia só funciona porque existe a crença de que: “quem sabe o melhor para o meu futuro sou eu”. Se esse mito se desfaz, a crença na democracia também se desfaz, seja pela escolha de um regime autoritário, seja pelo futuro distópico em que algoritmos saberão mais sobre nós do que nós mesmos e serão mais confiáveis em fazer nossas escolhas, como votar por nós. 

Colaboração não é apenas uma ideia de hippies e ultrademocratas, ou uma obrigação da nossa legislação municipal, é um instrumento essencial para o desenho de soluções inovadoras, eficientes, mais baratas e sustentáveis para nossas cidades.

Por tudo isso, é imperativo fortalecermos processos democráticos e participativos no desenho de nossas cidades.

Por Augusto Junior. Arquiteto e Urbanista. Colaborador do Laboratório da Cidade

Lucas Nassar Sousa. Arquiteto e Urbanista. Diretor Executivo e Cofundador do Laboratório da Cidade.

Artigo revisado e editado por Toni Moraes – Monomito Editorial para Laboratório da Cidade.

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