Resumo:
Oi, pessoal!
Estamos dando início ao 2º ciclo do Projeto Belém 40º e, nas próximas semanas, vamos tratar de como a mobilidade nas cidades e as escolhas de investimentos em infraestrutura transformaram nosso planeta e nossas cidades. No artigo de hoje, falamos de “Carrocentrismo” que é o culto ao carro como sinal de desenvolvimento social e econômico e o investimento massivo na mobilidade para automóveis. Este modelo contribui, não só para as mudanças climáticas, mas também com o desenho insustentável de grande parte das nossas cidades e a forma como as vivenciamos. Iniciamos esse debate em busca de compreender como e por que milhares de cidades no mundo optaram por dar prioridade aos carros e como esse processo se repetiu em Belém. Ao longo deste ciclo, vamos juntos entender os problemas e explorar as possibilidades de um novo modelo de mobilidade sustentável para todas e todos.
Esperamos que gostem da leitura,
Isabela Rocha e Sâmyla Blois.
Introdução
“O carro é o cigarro do futuro. Vai praticamente desaparecer. Será só para viagens e lazer, não para a cidade”, disse Jaime Lerner, urbanista que foi prefeito de Curitiba e ficou conhecido por conseguir grandes mudanças em benefício da população com investimentos de baixíssimo custo. Lerner também explicou que o carro não deve e nem vai acabar, mas que não pode ser o protagonista entre as formas de deslocamento: “Não há futuro urbano se o transporte depender de veículos particulares”. Em outra ocasião, disse: “o espaço das ruas está privatizado para o automóvel aí, quando a gente quer um pedacinho pro transporte público, o pessoal acha ruim”.
Jaime Lerner foi eleito o 2º urbanista mais influente do mundo em 2018 pela revista Planetizen, mas, ao se deparar com as suas declarações sobre o “cigarro do futuro”, muitas pessoas podem olhar com estranheza, uma vez que, os nossos centros urbanos estão tomados por carros e os maiores investimentos em infraestrutura são voltados para este modal. Hoje, esta é a realidade em grande parte das nossas cidades, mas nem sempre foi assim. É só pensarmos que as primeiras cidades de que se têm registros surgiram há 5.000 anos, e que a invenção do automóvel tem pouco mais de 100 anos. Há apenas 100 anos, o desenho urbano começou a ser voltado para os carros. Antes dos carros, as ruas das grandes cidades eram assim:
A primeira foto acima foi feita em Nova York, em 1900. Passando para o lado, podemos ver a Time Square (NY) retomada pelas pessoas no ano de 2007.
O primeiro automóvel foi criado em 1885 na Alemanha, por Karl Benz, mas foi ao final da primeira guerra mundial que os fabricantes descobriram e passaram a investir na produção sequenciada de carros. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, os modelos fizeram bastante sucesso e a procura foi bem maior do que o esperado, o que levou outras fábricas a iniciarem imediatamente a produção de automóveis com a mesma configuração.
No Brasil e em outros países da América Latina, a chegada mais forte do automóvel veio após o término da Segunda Guerra Mundial. Nos anos 30, a Ford e a General Motors foram duas montadoras que começaram os investimentos nas suas linhas de montagem no país, porém, foi quando Juscelino Kubitscheck se tornou presidente da república (1956) que aconteceu o boom automotivo brasileiro. As multinacionais iniciaram a produção pelos caminhões, camionetas, jipes e furgões para então começarem a fabricar veículos de passeio.
Desde então, investimentos em mobilidade voltada para os carros foram prioridade e a indústria automobilística incentivava a visão do carro como símbolo de sucesso e o desenho das cidades foi se modificando com ações de alargamento, extensão e sobreposição de vias, chegando a haver cidades inteiras projetadas na escala do automóvel, a exemplo de Brasília. Os prejuízos dessas escolhas são graves: estima-se que no período de 1h, em uma faixa de rolamento de 3,5 metros passem até 10 vezes mais pessoas em outros modais se comparado ao número de carros. Os danos se estendem à economia, ao clima, à saúde da população, e à forma como grande parte das pessoas vivencia o espaço urbano.
Mobilidade Urbana e Crise Climática:
Como já tratamos anteriormente , estamos vivendo um cenário alarmante de mudanças climáticas e, de acordo com o relatório mais recente do IPCC, para evitar que a temperatura se eleve além de 1,5ºC nos próximos 20 anos, precisamos de políticas focadas em zerar as emissões de carbono e, apesar dos esforços globais, o cenário atual não é nada promissor quando tratamos de mobilidade. Entre os anos de 2010 e 2019, as emissões de carbono pelo setor de transportes subiram em 40% e o Brasil, em 2019, ficou entre os países mais poluentes neste setor, juntamente com Estados Unidos, China, Índia, Rússia e Japão.
De acordo com Mapa de Motorização Individual no Brasil (2019), entre 2008 e 2018, a frota brasileira cresceu em 28,6 milhões de automóveis (de 37,1 milhões para 65,7 milhões) e 13,7 milhões de motocicletas (de 13 milhões para 26,7 milhões) e 40% desse total ficou concentrado nas regiões metropolitanas. As cidades que enfrentam os maiores desafios, concentram a maior parte destas novas frotas. Todas as regiões do país apresentaram aumento nas frotas neste período e as regiões Norte e Nordeste apresentaram os maiores aumentos percentuais.
É importante pontuar que, no Brasil, ao contrário de países do hemisfério Norte como Estados Unidos e Inglaterra, as emissões do setor de transportes não são as responsáveis pelo maior impacto e degradação ambiental, e sim a pecuária e o desmatamento. Ainda assim, esse modelo de mobilidade insustentável e excludente sujeita as populações urbanas a conviverem diariamente com efeitos nocivos à saúde, acessibilidade e coletividade. Estamos falando de coisas que todos nós presenciamos no dia-a-dia: horas perdidas em congestionamentos, doenças causadas pela poluição do ar (as doenças respiratórias foram a maior causa de internações por plano de saúde em 2019 – 506,9 mil, dados de antes da pandemia), exaustão e doenças como ansiedade e depressão, redução de áreas verdes nas cidades, violência e mortes no trânsito (em 2020, foram registradas 30.307 mortes no trânsito no Brasil), falta de infraestrutura adequada para as pessoas que não têm carro e se locomovem a pé, de bicicleta ou outros modais (ônibus, metrô, trem, etc), espraiamento das cidades, calor extremo e alagamentos motivados, também, pela impermeabilização desenfreada do solo para abrir mais vias para carros.
Mobilidade em Belém:
Em Belém, esses efeitos não são diferentes. A mobilidade urbana na capital paraense é um desafio diário para toda a população, uma vez que, os investimentos em mobilidade repetiram os padrões nacionais e internacionais já mencionados: de priorização da circulação de automóveis. Esse problema surge ainda no boom automobilístico do cenário nacional, o qual promoveu a construção de rodovias e a criação de estruturas viárias complexas na região Amazônica, a exemplo da Belém-Brasília que começou a ser construída em 1959 para promover a integração nacional, da BR 316, iniciada no mesmo período, e das PA’s. Assim, os investimentos e o planejamento urbano foram centrados no transporte individual, negligenciando as demandas da população que utiliza transportes públicos e realiza deslocamentos ativos, de bicicleta, a pé, entre outros.
Esse padrão de planejamento contribui para o agravamento de diversos problemas urbanos e climáticos na nossa cidade, uma vez que, a infraestrutura demandada pelo modelo de planejamento carrocêntrico relaciona-se de forma desarmônica com a natureza e com os não usuários de carros em geral. A expansão da malha viária gera a impermeabilização do solo e a redução da cobertura vegetal, além de propor desenhos urbanos que facilitam a locomoção de carros, mas comprometem a experiência da cidade na escala do pedestre, como as quadras e quarteirões muito extensos ou a concentração de equipamentos públicos em locais de difícil acesso.
Para além dos problemas causados diretamente pela priorização da mobilidade por automóveis, podemos falar de outras questões, que são sistêmicas, mas acabam se reforçando no carrocentrismo. A invenção do carro possibilitou o desenvolvimento de novas áreas urbanizadas em regiões mais distantes do centro, fenômeno a que damos o nome de espraiamento. Nos artigos sobre habitação, tratamos sobre os processos de afastamento de populações de baixa renda para essas áreas mais distantes e com menor acesso à infraestrutura e serviços em Belém. As consequências desse afastamento associado à falta de investimento em sistemas de mobilidade mais acessíveis são muitas: moradores de regiões periféricas gastam mais tempo dentro dos ônibus insalubres da nossa cidade para chegar de suas moradias aos seus locais de trabalho. Nessas áreas, também, a infraestrutura de ciclovias e calçadas é muito precária. O acesso aos serviços básicos de saúde, educação e, até mesmo, ao lazer ficam comprometidos pela dificuldade de locomoção.
Para exemplificar, geramos um mapa de Belém na plataforma mobilidados utilizando como variáveis “domicílios com calçadas no entorno”. No resultado, percebemos que, em bairros centrais, com população de maior renda per capita como Umarizal, Nazaré e Batista Campos (marcação verde), encontram-se, em maior número, as áreas com 100% de infraestrutura de calçadas. Por outro lado, em bairros periféricos, com população de baixa renda, como Terra Firme e Tapanã (marcação vermelha), encontram-se grandes extensões de áreas com 0% de calçadas. Mesmo nos bairros que são mais atendidos com a infraestrutura, são muitos os problemas de acessibilidade, segurança e conforto no passeio público. Não à toa, somos a capital com os piores indicadores de calçadas do país. O carrocentrismo certamente reforça desigualdades, mas é um problema de todos os que vivem na cidade e, portanto, todos devem se preocupar.
Quais são os maiores desafios da mobilidade em Belém?
Os desafios a serem enfrentados, em busca de um modelo de mobilidade mais sustentável e democrático para Belém, podem se apresentar em diferentes escalas. Do ponto de vista ambiental, temos um compromisso mundial pela redução de emissões de gases do efeito estufa que precisa ser cumprido para minimizar os efeitos do colapso climático. Na escala local, se continuarmos abrindo novas vias para carros e utilizando mais asfalto, o calor e os alagamentos vão piorar.
Quanto à qualidade de vida urbana, precisamos proporcionar condições dignas de deslocamento e maior acesso à cidade para toda a nossa população e isto depende da redistribuição dos investimentos que, hoje, são feitos na infraestrutura para carros. Belém tem as piores condições de mobilidade a pé dentre as capitais do país, uma malha cicloviária de apenas 113,72km, um nível baixíssimo de integração entre modais, e ônibus que frequentemente entram em “autocombustão”. Mesmo as pessoas que têm acesso a carros sofrem com as más condições de mobilidade por perderem horas em congestionamentos.
Para que haja essa redistribuição de investimentos, precisamos de reconhecimento imediato da gravidade do problema, disposição dos agentes públicos para realizar as mudanças em prol de uma mobilidade mais sustentável e, antes de tudo, do entendimento coletivo de que, se nada for feito, a situação só vai se agravar. Precisamos seguir o exemplo mundial e agir agora, repensando nossa mobilidade para a melhor circulação de pessoas. Não podemos deixar nossa cidade parar.
Referências:
https://extra.globo.com/noticias/mobilidade-urbana/o-carro-o-cigarro-do-futuro-diz-urbanista-jaime-lerner-em-evento-sobre-mobilidade-promovido-pelo-extra-veja-como-foi-17271908.html
https://www.infoescola.com/curiosidades/historia-do-automovel/
SLOCAT Transport and Climate Change Global Status Report – 2nd Edition
Mapa Nacional de Saúde Suplementar Dados e Indicadores do Setor — Português (Brasil)
https://mobilidados.org.br/capitais/
https://noticias.r7.com/carros/fotos/viagem-no-tempo-veja-propagandas-antigas-de-carros-27062016#/foto/11
Por Isabela Avertano Rocha. Urbanista e Arquiteta. Especialista em Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente. Mestra em Desempenho Ambiental e Tecnologia. Integrante do Coletivo Cidade para Mulheres. Gerente de Projetos no Laboratório da Cidade. Colunista e curadora de conteúdo do Blog do Lab.
Por Sâmyla Blois. Graduanda e PIBIC de Arquitetura e Urbanismo. Extensionista do Urbana Pesquisa. Estagiária voluntária do Laboratório da Cidade na área de pesquisas em sustentabilidade e espaços urbanos do projeto Belém 40°. Integrante do Coletivo Quintas Pretas.
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