O desaparecimento da representação faz as lembranças se tornarem suscetíveis aos lampejos da memória e serem submetidas aos riscos do esquecimento (OLIVEIRA, 2018, p. 61).
Escrevi em outro texto, aqui no Laboratório da Cidade, que a nossa relação com a cidade é comunicativa, porque interagimos com os espaços por meio das experiências que estabelecemos com eles. Mas, na ausência da cidade, ou melhor, na ausência de uma vivência mais intensa no dia a dia da cidade, em contexto de resguardo e distanciamento social, como podemos continuar a estabelecer nossas relações?
Quando soube da notícia do falecimento de meu tio, agora em tempos de covid-19, uma das primeiras coisas que fiz foi abrir a minha caixa de fotografias. Busquei alguma foto de nós dois para relembrar os momentos em que estivemos juntos e prestar uma homenagem a ele em minhas redes sociais. Lendo as reflexões sobre saudade e fotografia, de Dubois (1993, p. 90 apud OLIVEIRA, 2018, p. 60), compreendo agora o sentimento: “É a foto que literalmente vai se tornar sua lembrança, substituir a ausência”.
Para falar sobre o sentimento, tão presente em nossa nova rotina, pois estamos repentinamente tendo que lidar com distâncias, ausências e perdas, advogo que a saudade é uma forma de trazer não só as pessoas queridas e os momentos felizes, mas também a própria cidade, da qual estamos temporariamente ausentes, para o presente, já que “a saudade embaralha as instâncias temporais” (OLIVEIRA, 2018, p. 58).
Como lidamos com essa ausência da rotina de viver a cidade? Como lidamos com a ausência dos espaços, cheiros, sabores e costumes? Como lidamos com a ausência de estar com pessoas em lugares diferentes da cidade? Sentir saudade e rever registros são formas de se lidar com tudo isso.
Em minhas redes sociais, percebo que a imagem é a materialidade pela qual a saudade se revela. Muito comum no Instagram, o throwback – hábito de postar uma foto antiga – em um dia da semana faz as pessoas se dedicarem a lembrar do passado. A quinta-feira, famosa pela #tbt (throwback thursday), virou sinônimo de voltar no tempo, “jogar para trás” o momento presente e trazer até ele algo que se viveu dias, meses ou anos antes. E é curioso como o dia ganha novas camadas de sentidos nos tempos atuais.
Rever fotos de viagens e compartilhar socialmente com os amigos não só aquela imagem, mas tudo o que ela representa no imaginário e na memória, revela a ausência coletivamente compartilhada: não é só a sua saudade, mas, também, o sentimento saudoso de alguém que se reconhece em alguma parte daquele dia vivido.
Antes dos throwbacks, as fotografias impressas no papel, e até mesmo organizadas nos álbuns, eram os materiais capazes de guardar essas memórias que ativam os sentimentos das experiências. “No caso das fotografias de família, a sobrevida é garantida pela relação afetiva e de culto, que assegura a existência e a manutenção dos registros fotográficos” (OLIVEIRA, 2018. p. 61). Assim, retomar tais materialidades cria uma conexão não só com a imagem que se vê, mas com a relação que se estabelece com aquele próprio arquivo que, em muitos casos, é passado de geração em geração, garantindo-nos revisitar e reviver lembranças do espaço em que vivemos e estabelecer comparações no tempo: a casa que foi reformada algumas vezes, a rua que não era pavimentada e passou a ser, um casarão que existia e deu lugar a um prédio pós-moderno.
Essas imagens, compartilhadas analogica ou digitalmente, revelam-nos a cidade e suas formas e as memórias que se criam a partir dela, compondo uma outra forma de relação comunicativa com a cidade: não literalmente percorrendo as esquinas e ruas, mas os caminhos das lembranças e dos afetos que a saudade e a cidade nos permitem sentir.
Ao mesmo tempo, essa ausência de viver a cidade nos revela uma possibilidade, como uma brecha no tempo: refletir sobre o nosso gosto pela cidade, ou, ainda, repensar o nosso sentimento pelo espaço. Gostamos da nossa cidade?
É particularmente curioso como a fenda no tempo e a ausência nos revelam a saudade da nossa cidade, mesmo estando no seu espaço físico. Saudades da comida, saudades do pôr do sol, saudades de olhar pro rio, saudades de andar de bicicleta na orla, saudades de tomar uma água de coco na praça, saudades de uma cerveja no boteco, saudades de reunir os amigos. Sinto saudades das pequenas coisas, como olhar pra cima e ver como a copa das árvores forma uma imagem bonita. De passar pelo Ver-o-peso e sentir o cheiro forte de peixe e o quanto tem de vida ali, de contemplar as igrejas e perceber como ficam lindas à contraluz, de ir até a universidade e namorar o rio. Saudades daquela padaria, daquela coxinha, daquele pastel. Saudades dos espaços abertos, do vento na cara. Da música, de dançar e suar. Ah, eu não sabia que gostava tanto da minha cidade…
Saudades que se revelam no interior de um tempo vivido e de um espaço sentido, de representações imagéticas, trazidas ao presente, ressignificados pela memória. Quero que as lembranças não sejam simples lampejos e nem estejam condenadas à minha memória; com afeto, no futuro, ter novas experiências e, quem sabe, brincar de viver e rememorar a cidade.
Referência:
OLIVEIRA, M. Fotografia e saudade: três considerações sobre a perda. Novos Olhares, v. 7, n. 1, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2238-7714.no.2018.134327. Acesso em: 18 mai. 2018.
Por Suzana Magalhães. Publicitária, Mestra em Ciências da Comunicação (UFPA) e integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação, Política e Amazônia (Compoa-UFPA).
Artigo revisado e editado por Toni Moraes – Monomito Editorial para Laboratório da Cidade.