Para que todo cidadão possa usufruir daquilo que a cidade pode oferecer de melhor, o meio urbano vem sendo estudado sob diversas perspectivas. Uma dessas dimensões de estudo diz respeito ao direito urbanístico, ciência autônoma e multidisciplinar que norteia a cidade a partir de princípios basilares e que, ainda em construção, demonstra que este ambiente se desenvolve de formas diversas, mas que possui em sua essência regras e normas consistentes para que a ocupação urbana alcance sua finalidade.
Para elevarmos o entendimento da cidade a uma reflexão sobre o que desejamos para esta experiência, considerando-se que existem formas anteriormente pensadas para que haja um desenvolvimento da cidade de forma igualitária, é preciso que analisemos pontos breves do direito urbanístico. A vivência na cidade, analisada por meio dos dados estatísticos sobre os níveis de desigualdade que ela apresenta, leva-nos a pensar a respeito da cidade que desejamos e dos princípios do direito à cidade.
O planejamento é visto como um antecessor a todos os outros princípios do direito à cidade, uma vez que por meio dele é possível desenvolver-se e observar-se as diferenciações da cidade para cada ator que nela transita, não deixando às margens deste procedimento as “minorias”, assim chamadas não pela literalidade da palavra, mas por, historicamente, ter menos representatividade política, com suas vozes apagadas, distorcidas ou não ouvidas por aqueles que detêm o poder.
O planejamento urbano é imprescindível inclusive ao ordenamento territorial, político e social da cidade, tornando-se indispensável para seu uso social, com a inclusão e a ocupação dos espaços.
Podemos falar ainda sobre o princípio da função social da cidade, pois, vejamos, quando é iniciado um projeto, primeiro analisa-se o “desejo/vontade” (planejamento) e depois discute-se e adequa-se suas “funções/finalidades” (função social). A função social da cidade é aquilo que se pretende através do tipo de planejamento que se está realizando, ou pretende-se realizar. Para isso, observam-se as nuances sociais, políticas e territoriais, além de uma gama de fatores menores, mas não menos importantes, que influenciarão na finalidade pretendida pelo planejamento.
Através dessas características, forma-se uma espécie de tripé com a coesão dinâmica, que possui elo com o próprio dinamismo da cidade, onde são observadas e respeitadas as mudanças sociais, refletindo no próprio urbanismo, devendo, portanto, ocorrer a adequação ao contexto da história, da cultura e das novas relações formadas neste interim de processo construtivo. O planejamento e a função social da cidade mudam na mesma rotatividade que o tempo, os conceitos, os públicos etc., por isso observar a dinamicidade do meio urbano é respeitar sua coesão com a atualidade.
Como diz Daniela Di Sarno, “o princípio da coesão dinâmica surge justamente para que as modificações feitas pelas interferências urbanísticas sejam continuadas por ações que tenham pertinência e nexo com o contexto”. A coesão dinâmica prevê que existem atualizações que devem ser realizadas a toda mudança possível entre as relações humanas e a cidade.
Acredita-se que o recorte de gênero é um ponto crucial para o nexo com o contexto citado por Di Sarno. É nítido que a mulher ainda possui um caminho longo e diferente (identificar as diferenças não é necessariamente negativo) a ser processado para se chegar à eficácia da coesão dinâmica, em especial a mulher negra.
De forma sucinta, na história do Brasil, a mulher negra passou, e ainda passa, por muitas vivências sociais, que até o momento não estão adequadas para a sua forma de vida.
Analisando-se um contexto mais específico, a mulher negra na Amazônia teve a influência indígena, em especial sua religiosidade, muito presente, e perpassou o período de escravidão, a inserção no mercado de trabalho, a resistência às mudanças de condições sociais do negro e o acesso, sendo essas características ainda perceptíveis no cotidiano da Amazônia.
Pensando nisso, cita-se Djamila Ribeiro: “se não se nomeia uma realidade, nem sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível”. Neste contexto, precisamos pensar que na cidade não é diferente, sendo necessário pontuar-se as invisibilidades para que sejam reconhecidas; não por quem as sofre, mas por aqueles que a estão invisibilizando. É necessário lembrarmos que as diferenças de raça já nos levam a pressupor classe, o que, em um contexto urbano, delimita os atores que estão marginalizados pela cidade (excetuando-se, obviamente, as exceções a essa generalidade).
Para a mulher negra, essa percepção não é diferente, visto que a convivência com a cidade ainda segue a lógica das questões que já poderiam estar ultrapassadas há séculos.
A coesão dinâmica voltada a observar a forma de vida da mulher negra ainda não possui relevância suficiente, uma vez que não se inclui no planejamento que esta mulher, naturalmente marginalizada pelo elemento gênero e raça, não possui uma estrutura urbanística que observe as demandas que a rodeiam, e, sendo assim, quebra-se o tripé entre planejamento, função social da cidade e coesão dinâmica.
Para a eficácia da coesão dinâmica, e para pesquisas sociais mais aprofundadas voltadas a estas pessoas, analisa-se que o planejamento urbano não pode mais existir sem refutar as farsas ocorridas na caracterização histórica da Amazônia, como a de que houve um grande vazio demográfico na região, mesmo quando vários quilombos e aldeias estavam espalhadas pelo território, realizando atividades de cultivo e subsistência, enriquecendo a cultura e a transformando no que vemos e vivemos e como não vincular a relação da mulher amazônica com a biodiversidade, visto que a Amazônia é uma cidade-floresta e a cidade precisa harmonizar o direito ao meio ambiente com o direito à cidade, e as formas com que utilizamos a biodiversidade a nosso favor são mínimas comparadas ao grande aparato ambiental que possui.
O planejamento deve, ainda, considerar a possibilidade de criar-se espaços públicos de identificação da mulher negra amazônica, uma vez que se percebe que as mulheres desta região estão escondidas em casa por receio da violência que as persegue culturalmente e perpetua-se na forma que utilizam a cidade. Deve, também, pensar na criação de rotas de transporte público para mulheres-mães, por essas necessitarem ter melhor acesso para levar seus filhos de forma segura e eficaz às creches, escolas, hospitais etc. Essas são algumas dentre outras medidas possíveis através dos instrumentos urbanísticos.
Por esses motivos, o planejamento, como precedente à ordenação territorial, visando contribuir para o alcance de uma finalidade urbanística, precisa através da coesão dinâmica trazer a leitura das várias personagens que estão atuando na cidade, retirando a visão eurocêntrica criada e perpetuada durante anos, e iniciando a consideração sobre o lugar de fala das mulheres negras locais, enfatizando que o tripé é indissociável para a garantia de direitos à cidade, e que merece ser analisado em um formato pontual para o caso amazônico, respeitando suas liberdades, características e elementos que o tornam ímpar.
Referências:
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. São Paulo: Manole, 2004.
Instituto Feminista para Democracia -Faces da luta das mulheres negras na Amazônia -2018. Versão disponível em: https://soscorpo.org/feminismos-m-n-amazonia/
Manifesto da Rede Fulanas – Negras da Amazônia Brasileira para a Marcha das Mulheres Negras – 2015 – Adaptado. Versão na íntegra disponível em: https://redefulanas.wordpress.com/2015/11/19/manifesto-das-rede-fulanas-negras-da-amazonia-brasileira-para-a-marcha-das-mulheres-negras-2015/
Rede Fulanas NAB: https://www.google.com/search?q=Ativistas+da+Rede+Fulanas+NAB%3A+Negras+da+Amaz%C3%B4nia+Brasileira.&ie=utf-8&oe=utf-8&client=firefox-b-ab
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. (Coleção Feminismos Plurais)
SILVA, Júlia Maria Plenamente. O princípio jurídico da coesão dinâmica no Direito Urbanístico brasileiro. 2016. Tese (Doutorado em Direito Urbanístico) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
Por Karla C. Furtado Martins. Advogada, integrante da Comissão de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da OAB/PA e sócia do escritório feminista Moura, Cunha & Furtado Advogadas Associadas.
Artigo revisado e editado por Toni Moraes, Laboratório da Cidade.