Há tempo que as práticas culturais periféricas desfizeram a linha limítrofe que as isolava dos centros urbanos. Em Belém, o brega, que não nasceu nessa cidade porém foi assimilado e recriado pelos artistas locais, originalmente não era visto com bons olhos, seu espaço na cidade era relegado às aparelhagens nas casas denominadas de gafieiras (na década de 1980), distantes da cartografia aceita como produtora cultural da cidade.
A territorialização urbanizada do que é considerado cultura perde espaço quando a cidade traz para si o que é feito na periferia. Com a difusão das músicas nas rádios, inclusive nas rádios de poste, a classe média e a elite viabilizam a entrada desse circuito em seus espaços. Em 15 de junho de 2002, o grupo de aparelhagem Rubi se apresentou para o público e sócios beneméritos do clube Assembleia Paraense, um marco antes inimaginável, pois o brega não circulava de maneira oficial nos espaços da elite da cidade.
O brega produzido no Estado do Pará tornou-se atração principal na maioria das casas de show e bares do centro da cidade, sem deixar de existir na periferia. Em 2015, a Lei Ordinária Municipal 9095 instituiu o brega, o tecnobrega, o calypso, a guitarrada, o melody e o tecnomelody como patrimônios culturais de natureza imaterial da cidade de Belém. Assimiladas suas variações, o brega paraense se legitima como cultura popular.
Sua validação local se sobrepõe ao juízo de valor do resto do país com o termo. Para além de um gênero musical, a população assimila a estética, as formas de dançar e as formas de vivenciar as festas, a noite da cidade é o palco para a experiência na amplitude deste circuito bregueiro. Para o pesquisador Rafael Azevedo, o que chama atenção são os trânsitos entre o periférico e o cosmopolitismo presentes nas falas nativas e pulsões da cidade.
Em relação à linguagem, o brega paraense canta o popular, sem o rebuscamento das canções que ocupam o panteão da música popular brasileira (MPB). Um paralelo pode ser feito com a declaração do cantor Miro Alves, que usa o termo MPC – música popular complicada – para se referir à MPB e complementa dizendo que música popular é ele quem faz, pois os que rotulavam o brega como cafona, faziam música para ninguém entender.
Enquanto expressão cultural originada na periferia, o brega paraense ocupa os espaços da cidade tangenciando as construções de valor de acordo com as fronteiras de pertencimento de cada grupo. Normalmente o setlist do dj de brega que toca no centro da cidade não é o mesmo para as festas na periferia ou nos interiores. Segundo a escritora Ana Lúcia Meira, as atribuições de valores estão ligadas ao universo da escolha e do reconhecimento de seus significados, onde se inserem na dimensão simbólica do imaginário.
Ou seja, todos os signos e símbolos componentes desse meio são escolhidos e entendidos com valores advindos do imaginário, da noção de pertencimento. Assim, a validação nos espaços do centro da cidade desse patrimônio pode ocorrer de maneira diferente das áreas periféricas. Como exemplo, músicas com temáticas mais específicas de um cotidiano popular não ocupam o mesmo lugar na noite do centro da cidade em relação aos bregas com temáticas universais como relacionamentos.
Este trânsito entre espaços é conduzido pela transformação que ocorre no patrimônio do seu local de origem até outras zonas da cidade. O antropólogo Llorenç Prats diz que o patrimônio cultural é uma invenção e construção social. Correlacionando esse apontamento com o contexto, pode-se inferir que a sociedade reinterpreta de acordo com o tempo e o espaço a noção do que é considerado patrimônio cultural, atribuindo inclusive novas práticas e expressões.
Assim, o brega paraense permeia o popular e se comunica com todas as classes sociais, ainda que exista uma fragmentação dos componentes desse universo a depender dos locais em que ele é consumido. Em tempos de pandemia, as lives do ramo registram grande número de conectados, a exemplo da live “Cabaré do Brega”, que já soma mais de 270 mil visualizações, conforme o portal do jornal Diário Online.
O brega paraense tem lugar cativo na expressão cultural da população local. Paula Demczuk fala que o patrimônio cultural pode representar a memória de uma cidade, as práticas, representações e expressões dialogam com o tempo vigente se adequando em detrimento da continuidade dos atos, para coexistir com os novos tempos. A preservação patrimonial da cidade garante a compreensão da memória social.
Referências
1 2006 – bregapop
2 Lei Ordinária 9095 2015 de Belém PA
3 ‘Ao pôr do sol’ é eleita música tema na votação Belém 400 anos
4 Universitária Entrevista #40 – Rafael Azevedo (Brega Paraense)
5 https://www.youtube.com/watch?v=aOrj7J2HtqQ
6 MEIRA, Ana Lúcia. O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação
popular na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2004.
7 “Live de Verão do Cabaré do Brega” tem mais de 270 mil visualizações
8 DEMCZUK, Paula G. Ferrovia e turismo: reflexões sobre o patrimônio cultural ferroviário
em Irati (PR). Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Estadual de Ponta Grossa,
2011.
Por Tamyres Assunção, turismóloga, pesquisadora em patrimônio cultural.
Artigo revisado e editado por Toni Moraes – Monomito Editorial para Laboratório da Cidade.