Episódio #13: Os desafios da mobilidade urbana sustentável
LAB: Vamos falar com Marcel Martin que é arquiteto e urbanista, mestre em planejamento e gestão do território e coordenador de projetos de transporte no Instituto Clima e Sociedade (ICS).
LAB: Marcel, eu queria começar te agradecendo por ter aceitado o convite do Papo da Cidade e pela chance de conversarmos com os nossos ouvintes. Eu já vou direto ao assunto: qualquer pessoa que já tentou se locomover nas cidades brasileiras sabe que é um desafio conseguir chegar aonde se quer. Seja o pedestre que não tem calçadas e travessias seguras, seja o ciclista que não tem nenhuma infraestrutura cicloviária – ciclovias, ciclofaixas ou lugares para estacionar a bicicleta.
Não tem transporte coletivo de qualidade, geralmente os ônibus estão caindo aos pedaços com frequências que não são respeitadas, com paradas muito mal cuidadas e mesmo quem opta pelo carro vive preso em congestionamentos. Então, a primeira pergunta que eu te faço é: como é que a gente chegou até aqui?
MARCEL: Bom, eu acho que é uma bela pergunta para gente começar a conversa. Eu não sei se consigo te responder integralmente como chegamos aqui, mas acho que temos pistas importantes para olhar para o passado, para o presente e de fato refletir para começar a converter para o futuro que a gente deseja. Uma das primeiras coisas que temos que olhar antes da mobilidade é o uso do solo.
A cidade é feita pelas pessoas, né? Acho importante dizer isso antes de mais nada. Então, se falamos de cidade, estamos falando, no fundo, de melhorar a qualidade de vida das pessoas e fazer com que elas consigam exercer suas atividades, sejam elas quais forem. Mas o uso do solo é uma das grandes questões. Construímos cidades com pouca regulação, mesmo as cidades planejadas. Temos aí um dos maiores exemplos do mundo, Brasília. A gente fez um plano piloto com muita regulação, mas o crescimento da cidade (ocorreu) de uma forma não tão estruturada, então acho que a primeira pista que temos é como construímos as nossas cidades no momento de crescimento delas.
Quando tínhamos cidades coloniais, eram cidades muito simples né? Ruas de pedra, tudo aglomerado no centro. Na hora em que as cidades começam a crescer e que pegamos aquela explosão industrial, perdemos o controle porque o solo custa caro. O que eu quero dizer com isso? As áreas mais centrais da cidade custam caro e as populações que antes todas moravam em uma região central começam a ser expulsas para as periferias, o que a gente chama hoje de gentrificação.
Valorizamos algumas áreas da cidade e expulsamos as pessoas que não tem recursos para mais longe e mais longe. Aí toda a infraestrutura urbana tem que acompanhar isso e não é nem só transporte, é saneamento, rede de luz, rede de gás e, hoje em dia, de internet. Você vê o quanto isso ainda é um problema porque nas áreas mais centrais temos toda essa infraestrutura, temos opções de transporte – mais do que um, você pode escolher – e quanto mais longe você vai, você tem muito menos opções.
Você começa a gerar essas desigualdades sociais tão fortes que se refletem muito nos transportes e no cotidiano. Então, acho que aí mora uma grande questão: temos um Estatuto da Metrópole, um regimento super avançado para combater alguns desses problemas, mas temos muita dificuldade de aplicar isso. Tem aí uma questão de vontade política de mudar a cidade. Por que eu estou citando o Estatuto da Metrópole?
Temos instrumentos para habitação nas áreas centrais da cidade, temos instrumentos para não deixar prédios e casas desocupadas, temos uma série de instrumentos, mas é muito difícil de aplicar porque a especulação imobiliária tem um poder muito grande. É muito difícil, no Brasil, falar de qualquer coisa de cidade e não falar do uso do solo, mas trazendo um pouco para a agenda de transportes, acho que outra grande pista foi dar muita prioridade para o carro, né?
Eu sempre comento, acho que um bom jeito de entender isso é pegar uma rua grande da cidade em que você mora; uma rua, não talvez a turística, mas aquela do dia a dia mesmo – que tem muito comércio, que é uma rua viva. Quantos metros de calçada você tem? Quantos metros de rua você tem? E o que que tem nessa calçada? Essa calçada é transitável? Existe uma ciclovia? E (tem) quantas faixas de carro? A maior parte do espaço público tá indo para o carro irrestritamente. Você também pode, dentro dessa área que está para o carro, destinar mais para o ônibus, mas até isso ainda é uma agenda difícil de emplacar, infelizmente, e muito por vontade política.
Acho que tem uma aposta muito grande em carro e um abandono do transporte público que nos faz chegar nessa situação alarmante que estamos. Isso aliado a uma população que tem menos poder aquisitivo, morando longe das áreas centrais, com um custo de tarifa alto é realmente um quadro de desigualdade inaceitável, né? Não tem muito como pegar leve nisso. Sem dúvidas, acho que essas duas lógicas de não ter uma mão mais forte na regulação do uso do solo e esse investimento até hoje tão priorizado para o carro nos trouxeram na situação de hoje em dia.
LAB: Ótimo, cara. Super interessante! Falar sobre políticas de mobilidade urbana sem abordar como vamos usar o solo e como vamos ocupar a cidade não é política de mobilidade urbana de verdade, né? O que tu acabastes de falar deixa claro que a opção que tomamos é completamente ineficiente, né? Mesmo do ponto de vista da geração de valor, da acumulação do capital, não existe eficiência nesse modelo. Então, tenta explicar para a gente como é que as nossas sociedades – porque não é só no Brasil – como o mundo, como as principais cidades do globo decidiram por uma opção tão burra?
MARCEL: Só retomando o começo em que você fala de não dissociar o planejamento de transporte do planejamento urbano, também entramos em um ciclo de planejamentos às vezes meio maluco, né? Temos um plano diretor, um plano de mobilidade, um plano de cicloviário, um plano de pedestres, um plano regional.
Precisamos ter a integração dessas coisas, estamos multiplicando os processos de planejamento sem dar efetividade a eles. Acho que tem uma importância aí de se olhar as coisas em conjunto porque no fundo, Milton Santos falava isso: “A cidade é o palco da disputa” e aí tem os grandes incorporadores e a população. Quem perde nessa disputa é a população, as grandes corporações ganham.
A cidade é o palco de disputa e precisamos olhar para a cidade de forma integrada, não nessa lógica fatiada de planejamento. Só para arrematar porque eu acho muito bom o que você colocou. Imbrica em muitas questões essa ineficiência da cidade e aí eu acho que talvez a gente tenha que discutir o que significa ineficiência ou ineficiência para quem? Ainda que gere as deseconomias, existe uma discussão de acumulo de capital e existe na materialidade da cidade uma forma de se alocar esse capital.
Aí é quando se deu aquelas bolhas imobiliárias, por exemplo, a de Barcelona que talvez seja a mais famosa. Se constrói prédios sem ter gente e é por uma lógica não da cidade, mas por uma lógica de um capital financeiro. Tem aí uma outra dimensão que não é a da cidade e que ignora a cidade, que resolve um problema econômico e não um problema urbano que se sobrepõe. Não tem como lidar com isso se não for através da regulação, se não for bom o plano diretor, se não forem bons mecanismos de equalização do uso da cidade.
Acho que a coisa da ineficiência passa muito por aí e passa por uma crueldade da lógica do capitalismo. Quem tem muito dinheiro não pode gastar o seu tempo em transporte e essa pessoa mora próximo do trabalho. O custo da hora das pessoas acaba tendo uma relação direta com distância de onde elas trabalham e eu não estou defendendo isso, é só uma constatação de que quando a hora da pessoa é muito barata em teoria, nessa lógica, ela pode ser penalizada a fazer três horas de viagem diária, mas dependendo é um problema maior
Como eu disse antes, acho que a cidade dá luz a isso, traz isso para a concretude, para o palco. Por que continuamos ignorando? Acho que a grande questão é: como a gente aceita essa lógica de barato? Conseguimos ter capitalismos, vamos dizer assim, menos selvagens, né? Com um pouco mais de humanidade, um pouco mais de preocupação com o ser humano. Se preocupar com as pessoas que moram ali, que trabalham ali, que usam o metrô, que usam o trem, que usam o ônibus. Se nós colocássemos o ser humano como centro das questões, dificilmente aceitaríamos o que temos hoje em dia. Mas colocamos outros fatores como prioritários.
LAB: Boa! Sabemos, Marcel, e tu começastes a falar um pouquinho sobre isso que existem muitos impactos negativos ao optar pelo modelo de mobilidade que optamos – que é carrocêntrico, voltado para os carros. Por exemplo, a colaboração que o transporte tem no aquecimento global, nas mudanças climáticas e também os impactos que são um pouco mais diretos. Fala um pouquinho mais sobre essas impactos pra gente.
MARCEL: Temos vivido eventos extremos cada vez mais recorrentes, né? Nuvem de poeira, anoitecer durante o dia, enchentes desenfreadas, falta de água. Estamos vivendo as consequências do aquecimento global. Aquecimento global não é uma coisa que uma cidade, um bairro, um país resolve sozinho. É uma questão global, mas olhando para o Brasil, a maior parte do nosso problema de emissões está nas florestas. Não é porque temos a floresta, é porque estamos destruindo a floresta. Isso tem a ver com o desmatamento, queimada e agricultura.
Esse é o grande emissor do Brasil hoje em dia, mas dentro das cidades o maior emissor é o transporte e dentro do setor de energia, que é o segundo emissor depois de uso do solo. O transporte é o maior contribuinte. Dentro do setor, nós temos a geração de energia, temos a indústria, temos um monte de coisa e o transporte representa 50% disso. Quando falamos de emissão, o que sai do escapamento de um ônibus, de um carro, de uma motocicleta gera gases de efeito estufa e poluentes locais que vão dar todas as questões respiratórias e cada vez mais tem estudos aprofundando a questão da primeira infância, né? O impacto disso na saúde de uma criança é um negócio assustador.
Cada vez que participo de uma live com médicos, eu ouço e é um negócio que você sai chocado do quão mal aquilo faz e como temos uma tolerância a isso também. Hoje em dia a gente, em relação aos padrões da Organização Mundial da Saúde (OMS), tá muito aquém. Aceitamos uma poluição do ar muito maior do que preconiza a Organização Mundial da Saúde.
Vamos entender o seguinte: ônibus também emite poluente, polui muito, mas na hora em que você faz a emissão per capita porque ônibus transporta quarenta, cinquenta pessoas – não deveria transportar muito mais do que isso, mas a gente sabe que transporta – ele emite muito menos do que um carro que tem uma ou duas pessoas.
Tem outro mito que estamos vivendo hoje em dia que é o de sistemas de compartilhamento, o futuro é car sharing e não sei o quê. Me desculpa mas não, continua sendo um carro. Pode estar com um uso mais otimizado? Pode, mas continua sendo um carro. Transporta em média duas pessoas, três quando muito. Não faz sentido, então, a primeira coisa é investirmos em transporte público e o que tem muito se discutido de ônibus ultimamente, que surgiu de opção e que não se resolve sozinho, é a eletrificação.
E porque eletrificação? Você consegue zerar as emissões de transporte, simples assim. Mas zerar as emissões e não fazer o restante, colocar o ônibus elétrico e não priorizar o sistema de trânsito, não vai resolver. Vai estar todo mundo parado, a cidade vai continuar sendo caótica só que sem tantos problemas de saúde, vamos dizer assim. Saúde do planeta e saúde humana.
LAB: Tu começastes a falar um pouquinho do que a gente precisa mudar, do jeito que tá não dá. O que está empacando, segurando essa mudança de acontecer? O que tá impedindo esse caminho da mobilidade para as pessoas?
MARCEL: É difícil tentar responder e eu só consigo pensar que é vontade política. É uma questão de olhar para as necessidades da população independente da agenda eleitoral. Acho ficamos baseados em um ciclo de quatro anos de gestão, seja ela municipal, estadual ou federal e não conseguimos fazer as alterações a médio e longo prazo. Acho que tem uma coisa de desatrelar o investimento do transporte de um ciclo eleitoral, de um ciclo político que é muito importante porque dentro de um ciclo político devemos cobrar, por exemplo, que se faça uma faixa de ônibus, uma ciclovia.
Isso, me desculpa, é falta de vergonha na cara não fazer porque dá e é barato, mas quando você vai para um BRT, para um metrô, para um trem, você tem que desassociar de um ciclo político. Um governador não vai conseguir entregar aquilo na gestão dele e isso então não vai dar voto para ele numa lógica muito pequena.
Outra coisa é a priorização de agenda mesmo, né? Precisamos priorizar essa agenda. Por que não priorizamos essa agenda de fato? Acho que tem outros interesses e é aí onde a coisa talvez perca a mão porque nós que somos da área temos o vício de discutir o problema tecnicamente. Se fosse técnico o problema, já estávamos garantidos porque temos técnicos muito bons para fazer tudo que a gente sabe que é o melhor do melhor do mundo.
LAB: Plano não falta, né?
MARCEL: Plano não falta e não falta profissional capacitado. Não falta gente falando, que nem a gente aqui, o que é a solução. Então, eu acho que bate no político diretamente e bate também em interesses de outros, de continuar dando isenção para carro. Não vamos extinguir o carro e, sinceramente, eu não sou contra o carro. Eu sou contra a prioridade que se dá para o carro.
LAB: Sobra subsídio para carro e falta subsídio para os outros modais.
MARCEL: Exatamente! É engraçado que eu já vi algumas tentativas da gente quantificar isso, né? O quanto damos para o carro. Mesmo que não seja em valor real, mas dá em subsídio, dá em isenção e o quanto a gente não dá para o transporte público. Não estamos sabendo lidar com as cidades porque a cidade é um bicho muito complexo mesmo, né? Mas não podemos ignorar, não podemos botar ele de escanteio. A gente tem que trazer ele exatamente para o problema do dia.
Transcrição da entrevista dada ao PodCast Papo da Cidade para o Projeto Belém 40º, realizado pelo Laboratório da Cidade em conjunto com o Instituto Clima e Sociedade (iCS).
Por: Ana Luísa Souza. Licenciatura em Letras. Voluntária no Projeto Belém 40º.