Manifestações em apoio ao desastroso projeto presidencial têm recrudescido. Nos finais de semana temos acompanhado, abismados, atos de fragilização à saúde pública e aos esforços para a supressão do contágio nesta pandemia. São atos de adesão a uma política que já encontra mais rejeição do que ressonância, contudo, a aparência consolidada nada assim reflete, e vivenciamos o eco de apenas um dos lados.
Voltamos às panelas, objeto triste de alvo seletivo elevado a protagonista da indignação daqueles que podem se confinar, que timidamente ressurgem, vez ou outra, de janelas e sacadas confusas que, surpresas com o óbvio, não acreditam nas posturas que confrontam os dados e a razão, afinal a Idade Média já restou no passado, não?
Como então o obscurantismo aflora e toma magnificência tão perigosa em nossa sociedade?
Ocorre que desde os movimentos de 2013 nos confrontamos com o pesado fardo de sermos uma sociedade apolítica, ou pior, que rechaçou o debate político, reflexo de um projeto nefasto, sim, mas que também conta com nossa cumplicidade conveniente, fator que impacta nossas visões quanto ao combate à pandemia.
A vida política é força motriz de progressos palpáveis, desde a Antiga Atenas, uma das maiores cidades-estados de sua época, até os países escandinavos atuais, líderes no índice de democracia (Noruega – 9,87; Islândia – 9.58 e Suécia – 9,39), segundo a Economist Intelligence Unit (EIU). Nesses casos, além de fatores como bom processo eleitoral e respeito a liberdades civis, a cultura e a participação política são tidos como engrenagens essenciais ao aspecto democrático e para o desenvolvimento de uma nação.
Na contramão temos o Brasil, ostentando a modesta 52ª posição neste ranking, apesar de sua relevância na América Latina, sendo, dentre as nações desse bloco, apenas a 10ª posição. Tal cenário espelha uma cultura política insuficiente e uma participação popular reduzida no destino das políticas adotadas, ainda não compreendemos a força que a opinião pública detém e o poder transformador que condensa.
Mas o questionamento é: o que fazer?
De certo, não cabe mais no campo das cogitações manifestações violentas, já superamos a barbárie e o resultado de atos dessa espécie somente gerariam repressões truculentas de governos sedentos pelo autoritarismo. Não se toma o poder com o crime ou com uma conspiração sem sujar o trono de sangue, já era preconizada a lição de Macbeth (Shakespeare, 1623), e hoje quem resta sobre esse trono inoperante e inoperável não são nobres mas sim a população, sobretudo a mais carente, que novamente veria seu sangue derramado.
Assim, além das ideologias e da força, precisamos sustentar a constituição e os mecanismos ali previstos, deixando de lado a película sob a qual optamos por perceber o mundo – sejam verdes, vermelhas ou azuis, como já destacou Kant –, mergulhar na vida política e trazê-la para a expressão dos nossos dias.
Nosso silêncio se faz ensurdecedor há anos. Salvo momentos de convulsões populares direcionadas, pouco bradamos, assim, o que precisamos deixar aflorar não é nossa condição natural dos humanos pelo conflito de suas paixões: medo, esperança, amor, ódio, mas sim a potência coletiva que é a real detentora do poder político, podendo assim ser responsável pelo seu fortalecimento ou ruína, ou seja, exprimir o melhor daquilo que Spinoza denominou de multitudo em sua obra Tratactus Politicus.
Engajar e propagar! Entender e partilhar! Desgarrar movimentos políticos de momentos pontuais, ir além do “vira voto” para o “expande visões”. Recobrar o ser político visualizado por Aristóteles e que já conseguiu transformações expressivas, tal como alcançou a greve geral das mulheres, em 1975, que permitiu a maioria feminina no parlamento islandês, ou ainda a marcha de Selma a Montgomery, em 1965 – conhecida como Domingo Sangrento, que iniciou e resultou na garantia de direitos civis a negros e Lei dos Direitos ao Voto, em 1965, nos EUA –, ou ainda o movimento pelas Diretas Já, iniciado em 1983 e que importou na redemocratização do país, fazendo-nos não olvidar que a centelha democrática arde igualmente em nós.
Deixemos que essa inquietação visceral por momentos melhores pavimente pontes e vias entre nós cidadãos de um mesmo povo, construindo o novo “normal”, onde a expressão de nossa visão política provoque debates e reflexões mobilizadoras de nós mesmos, a ponto de nos tornarmos uma sociedade mais igualitária, justa e digna.
Por Marcel Vasconcelos. Advogado, pós-graduado em Direito Processual e Devido Processo Legal pela Universidade da Amazônia – UNAMA e Diretor Adjunto do Laboratório da Cidade.
Artigo revisado e editado por Toni Moraes – Monomito Editorial para Laboratório da Cidade.