Resumo: Vivendo em um contexto de emergência climática, já sentimos, em nossas cidades, os diversos efeitos causados pela relação predatória que estabelecemos com os nossos recursos naturais até aqui. Para construir resiliência urbana, o conceito emergente de Soluções baseadas na natureza (SbN) vem ganhando visibilidade em todo o mundo. De um modo geral, o conceito propõe que os desafios relacionados ao meio ambiente, à diversidade e à sociedade deverão ser abordados de forma conjunta a partir de soluções sinérgicas a estas problemáticas. Para conversar sobre o potencial da infraestrutura para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, convidamos o Prof. Dr. Newton Becker, arquiteto paisagista, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) , e você pode ler a entrevista completa com ele abaixo.
Isabela Rocha.
Perguntamos ao Prof. Newton sobre o uso de SbN na promoção de espaços urbanos mais resilientes às mudanças climáticas; que tipo de local pode receber essas soluções e como planejar sua instalação; o que é necessário para planejar um sistema integrado e eficiente e sobre a importância da participação comunitária nesses processos.
Aqui você pode ler o resultado da conversa:
De forma geral sobre infraestrutura verde e SBN:
Vou trazer uma questão de infraestrutura verde, a partir de um entendimento de que faz parte de uma SbN, possui um viés quantitativo, relacionado a prestação de serviços ecossistêmicos, que nós compreendemos como benefícios que são econômicos, sociais, culturais, providos pela natureza ou pelos processos naturais como infraestrutura. Um aspecto bem relevante que eu e outros pesquisadores defendemos é que o entendimento da paisagem, natureza, seja híbrida ou natural, artificial, uma reprodução de processos naturais, todos esses elementos, principalmente dentro da cidade, podem desempenhar funções de infraestrutura, relacionados a controle, produção e à própria cultura, quando relacionamos a atividades recreativas, de organização social.
Em relação aos benefícios da infraestrutura verde, precisamos compreender que estes são mensuráveis. E quando falamos em mensurar, também entramos no aspecto de performance dessa infraestrutura. Daí entram estudos das áreas de engenharia ambiental, hidráulica, arquitetura e urbanismo, paisagismo etc.
Nessa leitura da natureza na cidade como infraestrutura, essa mensuração pressupõe uma medição, um entendimento dessa performance. E, nesse aspecto, uma posição que tenho amadurecido é a compreensão dos elementos de infraestruturas verdes, como jardim de chuva, biovaleta etc. como algo que exige uma seriedade assim como qualquer outra infraestrutura. Hoje, temos pavimentação, mobilidade, energia, todas providas por concessionárias, dentro de um entendimento de arrecadação de impostos, de gestão pública. Então, o meu entendimento de estrutura verde é que esse verde, como papel estrutural, precisa ser entendido como um serviço e, sendo um serviço, ele será provido. Não precisa, necessariamente, ser algo que seja colocado em prática por uma comunidade, um condomínio, por exemplo. Acredito que temos que caminhar para um novo entendimento de que a infraestrutura verde é uma infraestrutura. Considero que estamos muito distantes ainda deste entendimento.
Analisando, por exemplo, o dossiê de SBN publicado na edição especial da revista Lab Verde, onde o artigo mostra a localização de alguns projetos pilotos de elementos de infraestrutura verde, como jardins de chuva, localizados em SP, vemos que isso é muito pontual. Neste mesmo artigo, temos um quadro de comparativos de áreas (Fig.1), colocando exemplo da cidade de Philadelphia (EUA), mostrando um quadrado e desse quadrado, que representa a área total da cidade, tem um outro quadrado verde que deve representar cerca de 1/10 desse quadrado total, onde mostra a quantidade de infraestrutura verde que seria efetivamente relevante, no sentido de prestar serviços ambientais e infraestruturais, por exemplo, de manejo de água de chuva, controle de qualidade da água, do clima etc.
Temos que caminhar nesse sentido.
Sobre os alagamentos:
Temos que entender que as infraestruturas verdes, relacionadas ao manejo de água, têm uma limitação, pois as cidades são muito impermeáveis. Então, essa conta não bate, de pensar em compensar toda a impermeabilização que a cidade tem com as infraestruturas verdes. Isso exigiria muitos dispositivos de infraestrutura verde para que houvesse um anulamento dos alagamentos. Precisamos de leituras de cada local, até porque alagamento é um fenômeno natural. Nós é que ocupamos lugares indevidos, que possuem influência das marés ou que alagam naturalmente. É preciso também respeitar esses limites, que foram agravados pelas condições de impermeabilização que nós temos tradicionalmente nas superfícies urbanas. Então, não é certo acreditar que as infraestruturas verdes vão acabar com os alagamentos nas cidades. Principalmente quando não temos um planejamento integrado que, por exemplo, respeite as bacias hidrográficas como unidades de planejamento. Estamos ainda bem distantes disso.
Quanto à participação:
Defendo a infraestrutura verde como uma infraestrutura séria, que precisa de planejamento, de aparato de manutenção e operacionalização dentro de uma gestão urbana municipal. Algo extensivo, grande.
Nós vamos passar por etapas, começando no jardim de casa, condomínio, da rua, mas para uma mudança que possa ser efetiva, por exemplo, quando falamos em mitigar os efeitos das mudanças climáticas, proporcionar uma melhor adaptação, ter cidades mais resilientes e sustentáveis, a meta precisa ser ambiciosa.De ter esses elementos em quase todas ou todas as ruas da cidade. Existem, claro, lugares mais propícios, como temos estudado, onde inserir esses elementos de forma mais correta.
A participação é algo que pode amparar a aceitação desse novo tipo de infraestrutura. Tem-se associado a infraestrutura verde e soluções baseadas na natureza como uma panaceia para precariedade da nossa infraestrutura urbana, ou seja, recorre-se à infraestrutura verde para situações em que temos uma vulnerabilidade no saneamento, na drenagem, na coleta e tratamento de afluentes etc. E aí temos que nos colocar na posição do morador da comunidade, entendendo que este, dentro de uma exerção de cidadania efetiva, tem o direito de ter serviços de infraestrutura providos pela gestão pública ou concessionárias, sem precisar, necessariamente, “colocar a mão na massa” para ter uma drenagem ou uma coleta e tratamento de esgoto. Se a infraestrutura verde é uma opção, ótimo, mas que também entre nessa gama de soluções, que o morador de qualquer lugar da cidade possa usufruir desses benefícios de uma forma passiva, sem precisar necessariamente estar comprometido, visto o cotidiano cansativo da população com turnos de trabalhos cada vez mais opressores e, além disso, ter que lidar com a responsabilidade de gerir as infraestruturas. Para ter um processo participativo, precisaríamos de todo um rearranjo operacional para que isso seja viável.
Considero uma perspectiva equivocada de associar a infraestrutura verde a uma solução para condições precárias de saneamento, temos que pensá-la como uma solução holística para todas as camadas sociais, todas as pessoas, todos os setores da cidade, e não como uma remediação para lugares que estão em condições precárias.
Coloco essa posição como resultado de uma visão positiva do futuro, em que as infraestruturas verdes são oferecidas na cidade como opção de infraestrutura e, para isso acontecer, depende de vontade política, transdisciplinaridade, da preparação de pessoas para projetar e cuidar dessas infraestruturas.
Agora, nós estamos em um momento, como mostra esse caso de SP, em que temos poucos casos em operação de infraestrutura verde para saneamento, e num estágio que ainda é distante de suficiência, para que esta tenha uma relevância como infraestrutura.
Para essa transição, onde hoje temos as estruturas tradicionais de drenagem, de canalização, das infraestruturas subterrâneas com capacidade muito restrita e pouca longevidade, teríamos que assumir a infraestrutura verde como um backup, um reforço a essas infraestruturas tradicionais, até chegar num ponto que elas poderia se sobrepor e serem projetadas juntas.
Em países como o Brasil, por exemplo, que não possuem sua infraestrutura totalmente consolidada, teríamos a oportunidade de dar um salto, já partindo para essa combinação. Nos países em que já há infraestrutura consolidada, em relação a drenagem, por exemplo, existe essa tendência de “ser mais verde”, enquanto nós passamos por um processo inverso, em que as comunidades tradicionais já eram “mais verdes” e houve uma ruptura com essas soluções vernaculares que possuíam mais aderência com a natureza, substituídas pelas soluções convencionais que têm demonstrado ineficiência.
Acredito que temos um potencial muito grande de ter uma infraestrutura que represente a nossa tropicalidade, utilizando plantas adequadas ao nosso clima, às chuvas. Para mim, faz muito sentido falar de jardins de chuva em Belém, por exemplo, onde já existe toda uma vocação que observamos ao caminhar pelas ruas, como no entorno da UFPA, em que há sarjetas profundas, algumas com vegetação, que já são praticamente biovaletas. Daí seria um trabalho de cálculo e de já compreender essa infraestrutura como algo formal com um potencial gigantesco.
Esse processo de quase uma legalização da infraestrutura verde, que é informal, e o entendimento de que isso pode ter uma aderência às infraestruturas tradicionais, é longo e, aí sim, a participação popular tem um papel fundamental, com a educação ambiental, a troca de saberes com comunidades tradicionais. Para atingir a transformação, para um retorno das tradições verdes, só que num contexto contemporâneo, assumindo o desafio de, dentro dos nossos costumes e cultura atuais, envolver as pessoas nessas infraestruturas verdes disponíveis de forma extensiva na cidade.Isso é um grande desafio. A nossa geração que já cresceu em áreas urbanizadas, muito processadas, está muito distante de entender como esses processos funcionam, precisando de uma reeducação. E, paralelamente a isso, para que esta aparelhagem verde funcione, a gestão pública deve assumir, também, um objetivo, a longo prazo, de mudar a infraestrutura da cidade e, aí sim, nós teríamos novas paisagens urbanas e um universo interessante a ser explorado. Precisamos de uma visão de futuro com novas diretrizes.
Por Newton Becker, arquiteto paisagista, professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFC, pesquisador do Laboratório de Experiência Digital (LED/UFC), doutor em Paisagem e Ambiente pela FAUUSP e pós-doutor em Engenharia Hidráulica e Ambiental pela EPUSP com o tema Landscape Information Modelling.
Entrevista concedida a Isabela Rocha.
Transcrição da entrevista por Julia Ladeira.