Não existe justiça climática sem a luta antirracista

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Foto: André Santos (Arquivo pessoal)

Resumo

Oi, gente! Hoje inauguramos uma série de produções do projeto Cidade da gente, em parceria com o Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU, e trata-se de um projeto de comunicação que busca dialogar com a sociedade e profissionais da área, sobre

temas relacionados à vida nas cidades, acesso à infraestrutura, serviços, lazer e direito à cidade. Neste artigo, discutiremos acerca da forma como o espaço da cidade é dividido e como isso proporciona diversas divergências e diferenças, principalmente no que diz respeito à existência negra na cidade. Essas diferenças geram, entre outras coisas, uma maior exposição às vulnerabilidades sócio climáticas, riscos e crises ambientais, encaminhando-se para o conceito de racismo ambiental. Contamos com a tua participação para enriquecer esse debate e mergulhar com a gente nas temáticas de direito à cidade! Boa leitura!

Sâmyla Blois.

A divisão racial do espaço e das crises climáticas

É fato que o clima está esquentando, as marés estão avançando e o clima está mudando. O relatório do IPCC de 2021 revelou que o aquecimento de 1,5ºC em todo o globo já é inevitável, e que se não nos atentarmos para a ação antrópica agora, esse aumento se dará em uma constante progressão, resultando em diferentes eventos climáticos e ocorrências ambientais. Contudo, é preciso compreender que estes eventos não serão sentidos da mesma forma por toda a população, uma vez que há uma desproporcionalidade no uso do espaço e nos recursos de enfrentamento das consequências negativas de desastres naturais. No nosso contexto atual, vivemos um estado de injustiça ambiental. 

O processo de colonização e a colonialidade a que nós fomos submetidos, fornece subsídios para que o capitalismo se sustente sob hierarquias de dominação e exploração das relações econômicas, sociais, naturais, tal qual, na produção do espaço. Por esse motivo, o geógrafo Milton Santos elucida que o espaço é uma acumulação desigual de tempos, o que faz com que algumas configurações espaciais evidenciem articulações entre passado e presente das relações raciais. É sobre essa perspectiva que precisamos entender a disparidade dos espaços urbanos e os diferentes impactos dos eventos climáticos sob a população.

Lélia Gonzales no livro “Lugar de Negro” evidencia que o lugar natural do negro é oposto ao do branco, uma vez que, enquanto o branco se situa em amplas habitações em espaços seguros na cidade, o negro historicamente foi submetido a senzalas, cortiços, porões, favelas, invasões e guetos, nos quais não se é garantida qualidade habitacional, tampouco acesso à higiene e saúde. No mesmo sentido, populações tradicionais desenvolveram-se e sobrevivem à custa das consequências do processo exploratório do território e da urbanização de grandes cidades, perdendo seus espaços de plantio, moradia, convívio e morte para grandes empreendimentos e terras agropecuaristas. Assim se dá a divisão racial do espaço, que beneficia as classes dominantes, garantindo sempre o poder e o controle do espaço ao opressor, e a crise, o risco e a vulnerabilidade ao oprimido.

Nesse sentido, não só o desenho urbano e o uso do solo foram influenciados por essa lógica, mas a orientação da discussão sobre natureza, recursos naturais e cobertura vegetal nas cidades também sofreram seus efeitos, sendo costumeiramente discutidos sobre a perspectiva da rentabilidade econômica e os benefícios às classes dominantes, o que gera diversos custos ambientais e uma desproporcionalidade desses custos. Esta visão é a mesma que apoia o desmatamento de áreas ambientais protegidas na cidade em prol da construção de empreendimentos imobiliários, por exemplo, e que, assim, permite o desenvolvimento de injustiças ambientais, áreas de risco e desigualdades socioambientais.

Entretanto, os impactos de decisões equivocadas e negligências do poder público sobre os espaços naturais, efetivam a desigualdade na forma como a população sente as consequências dos eventos climáticos, desmatamento, desastres ambientais e alocação de espaços tóxicos como lixões. Mas essa desigualdade é fundamental para que se dê continuidade às estruturas do capitalismo e as relações de poder. Assim, enquanto a classe dominante estiver desfrutando de seu empreendimento e toda a infraestrutura que lhe foi ofertada, a população marginalizada sofre com alagamentos, calor excessivo, falta de saneamento ou proliferação de doenças na mesma vizinhança. 

A luta em prol de justiça ambiental

Há muito tempo, as teorias críticas e as agendas ambientais visam a mudança na distribuição do poder sobre os recursos ambientais, para combater as calamidades causadas por eventos climáticos e a degradação do meio ambiente. Entretanto, para tal combate, é necessário primeiramente reconhecer que os problemas ambientais estão entrelaçados à forma de distribuição desigual do poder sobre recursos políticos e materiais, uma vez que a injustiça ambiental é decorrente de opressões de classe, raça e gênero. Portanto, entende-se que a distribuição desigual dos riscos ambientais pelas classes sociais é uma consequência da economia capitalista, onde os benefícios gerados pela produção de mercadorias e de serviços se concentram nas camadas mais altas da sociedade, enquanto esses riscos ambientais concentram-se nas camadas mais baixas.

Por isso, em 1978, o Reverendo Benjamin Chavez usa, pela primeira vez, o conceito de “justiça ambiental” durante protestos contra o depósito de bifenilos policlorados (PCB), compostos altamente tóxicos. E assim, nos anos 80, o Movimento de Justiça Ambiental constitui-se nos Estados Unidos, originando-se na luta por direitos civis das populações negras, consequente da percepção de que as injustiças ambientais estão presentes nos grupos sociais marginalizados e mais vulneráveis na sociedade. Em 1991, então, acontece em Washington a Primeira Conferência Nacional de Lideranças Ambientais de Pessoas de Cor, na qual os delegados da conferência aprovaram os “17 princípios da justiça ambiental” – uma carta de princípios que estabeleceu uma agenda ambiental focada nas vulnerabilidades sociais e étnicas. 

Fonte: National Geographic. Autor: Greg Gibson, AP.

A justiça ambiental remete, portanto, a equidade de acesso a recursos ambientais por todos os grupos sociais e étnico-raciais, além do não enfrentamento desproporcional das consequências de desastres ambientais e eventos climáticos ou da omissão de políticas públicas que geram exposição de determinadas populações a maiores riscos devido ao modo de urbanização das cidades. Logo, a justiça ambiental refere-se “aos princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional de degradação do espaço coletivo.” segundo Henri Acselrad. 

“A denúncia da desigualdade ambiental sugere uma distribuição desigual das partes de um meio ambiente de diferentes qualidades e injustamente dividido”
ACSELRAD, Henri.

Racismo estrutural, a luta antirracista e o racismo ambiental no Brasil

No Brasil, o racismo estrutural avassala as vidas negras urbanas e tradicionais. Kabengele Mulanga elucida que o racismo brasileiro “não é o pior, nem o melhor, mas ele tem as suas peculiaridades  entre as quais, o silêncio, o não dito, que confunde todos os brasileiros e brasileiras, vítimas e não vítimas [do racismo]”. É constituinte das estruturas sociais e contribui com a continuidade de padrões iniciados desde os processos coloniais.

Assim, o mito da democracia racial fez-se crer que o Brasil “transcendeu” e superou os conflitos raciais por meio da harmonia entre negros, mestiços e brancos ocasionado pelo processo de miscigenação. Essa fantasia, porém, somente mascara a sistemática com a qual o racismo permeia as estruturas sociais como, por exemplo, por meio do racismo institucional, que proporciona seletividade e exclusão racial para fins de beneficiar o Estado e os grupos de classes dominantes. Logo, o racismo institucional condiciona as ações e políticas públicas e perpetua privilégios condicionantes das desigualdades raciais, sujeitando as populações racializadas à condições de vulnerabilidade e desproteção social. 

Portanto, o racismo ambiental é uma forma de racismo institucional, uma vez que a omissão de políticas públicas favorece que no meio ambiente predomine determinantes da desigualdade social e racial, resultando em iniquidades raciais, exploração política e enfrentamento dos piores problemas ambientais pelas comunidades negras. Além disso, é realidade da população parda e negra no Brasil a vivência em condições socioambientais precarizadas, expostas a diversos riscos e vulnerabilidades sócio climáticas, ainda possuindo baixa participação nos processos decisórios, o que complementa o escopo de racismo ambiental no Brasil.

No início do século XXI, as relações raciais se tornaram um tema presente nos debates da sociedade brasileira, movimentado principalmente pelo Movimento Negro Brasileiro, que buscou fixar essas questões dentro das agendas de debates públicos e estudos acadêmicos. Resultado dessa luta foram experiências em políticas públicas de combate ao racismo e ações afirmativas, propondo a discussão da questão racial em diferentes agendas, inclusive, na organização de uma agenda voltada para a saúde da população negra brasileira, a Política nacional de Saúde integral da População negra (PnSiPn) a qual denunciou injustiças e iniquidades na saúde pública dessa população. Outros marcos importantes foram a lei de saneamento e o Estatuto da Igualdade Racial, uma vez que, recomendam, em texto oficial, que as populações negras urbanas e tradicionais (quilombolas, ribeirinhos e outros) tenham prioridade em programas de saneamento. 

Entretanto, de lá pra cá, o cenário se manteve praticamente o mesmo. O negro no Brasil ainda representa a maioria massiva sem acesso à saneamento básico, exposto à inseguridade habitacional, foco da poluição de resíduos sólidos e maior afetado por enchentes e alagamentos na cidade. O pesquisador Victor de Jesus evidencia a disparidade do acesso a saneamento, segundo dados do Censo IBGE 2010, e, cruzando informações com o DataSUS, o autor identifica que de 1996 a 2014, 231.087 brasileiros morreram de DRSAI (doenças diretamente relacionadas à falta de saneamento quanto aquelas agravadas por não se ter saneamento adequado para a higiene pessoal). Dessas mortes, 23% não apresentam a identificação racial, e dos 77% cujo quesito cor fora preenchido, 55% são negras e 43%, brancas, uma diferença percentual de 12% que equivale a 21.270 óbitos a mais. O autor ainda afirma que, em termos práticos, esses dados significam que uma pessoa negra morre a cada uma hora e meia por falta de saneamento no Brasil.

Porcentagem comparativa do acesso de saneamento básico por parte da população branca e negra no Brasil.
Fonte: Adaptado de IBGE (2010) com colaboração de Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira (IBGE/RJ)

Em Belém, o arquiteto e urbanista Thales Miranda identificou que o processo de urbanização do final do séc. XX, até os dias atuais, exerceu um alto consumo de terra para o crescimento urbano, suprimindo intensamente a cobertura vegetal, um processo pautado pela ação estatal e outros atores sociais e detentores do poder social, político e econômico. Entretanto, as áreas suprimidas correspondem às áreas mais suscetíveis a alagamentos e inundações, além de comporem os espaços urbanos marginalizados onde se concentram as populações negras da região metropolitana de Belém.

A inundação segue o padrão de segregação socioespacial, concentrando-se as pessoas negras e de baixa renda nas planícies de inundação de Belém. Thales Miranda (2020).

Não existe justiça climática sem a luta antirracista: arrematando a conversa

Alagamento em Belém após maré alta de até 3 metros em 2015. Fonte: Dol online.

Os espaços urbanos estão calcados no capitalismo e no colonialismo, formando-se sob hierarquias entre as relações sociais e opressões sob classe, raça e gênero. O resultado disso são inúmeras negligências por parte de agentes urbanos, sociais e poder público em relação ao uso do solo e dos recursos naturais, contribuindo para a exposição das populações negras à vulnerabilidades sociais e climáticas.

É impossível pensar em caminhos para a justiça climática e a resiliência no contexto de crise climática, sem a luta antirracista, uma vez que, a população que mais sente e sofre com a mudança do clima e os desastres naturais, é a população negra. É preciso fornecer subsídios e estruturar áreas marginalizadas para atingirmos uma equidade no que diz respeito à disponibilidade de saneamento básico, acesso à água potável e recursos naturais e repensar de que forma o poder sob os recursos materiais e naturais está sendo usado e discutido.

Referências:

Questões urbanas e racismo. Organizado por Renato Emerson dos Santos.

Mudanças climáticas alarmantes: veja 5 grandes resultados do relatório do IPCC. https://wribrasil.org.br/pt/blog/clima/ipcc-relatorio-mudancas-climaticas-2021

Lugar de Negro, editora Marco Zero. Por Lélia Gonzales e Carlos Hasenbalg.

As origens da justiça ambiental – e por que só agora ela recebe a atenção devida. Por Alejandra Borunda. https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2021/03/as-origens-da-justica-ambiental-por-que-so-agora-recebendo-atencao

Justiça ambiental e construção social do risco. Por Henri Acselrad. https://revistas.ufpr.br/made/article/view/22116/14480

Kabengele Munanga, o antropólogo que desmistificou a democracia racial no Brasil. por Lilian Milena.

Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra: um continuum colonial chamado racismo ambiental. Por Victor de Jesus.

https://www.scielosp.org/article/sausoc/2020.v29n2/e180519

A ilusão da igualdade: natureza, justiça ambiental e racismo em Belém. por Thales Miranda. https://drive.google.com/file/d/1UU9SJ131vPc3ppwhRK6FMm0xEk3gsahk/view 

Por Sâmyla Blois. Graduanda e PIBIC de Arquitetura e Urbanismo. Extensionista do Urbana Pesquisa. Estagiária do Laboratório da Cidade na área de pesquisas em sustentabilidade e espaços urbanos dos projetos Belém 40° e Cidade da gente. Integrante do Coletivo Quintas Pretas.

Cidade da gente é um projeto desenvolvido em parceria com o CAU/BR.

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