Episódio #12: Habitação e Crise Climática: Caminhos Possíveis
LAB: Carmem, essa entrevista faz parte de um projeto que estamos desenvolvendo chamado Belém 40o, que trata dos efeitos da crise climática em Belém. Estamos falando de cinco ciclos e começamos por habitação. Já fizemos pesquisas e contextualizamos o problema, publicamos um episódio do podcast, três artigos e uma das soluções apontadas para resolver o problema da habitação, de forma mais sustentável, é a ocupação de edifícios no nosso centro histórico. Temos muitos edifícios vazios aqui e um déficit habitacional em Belém que pode chegar a 94.630 imóveis até 2022, de acordo com o Plano Plurianual.
Somos grandes admiradores do teu trabalho e da tua história, estamos muito felizes e honrados em poder te entrevistar e queríamos pedir para tu começares te apresentando.
CARMEN: Eu sou Carmen Silva, líder do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). Sou uma retirante baiana e vim para São Paulo na década de 90 com um sonho, como todo mundo que sai da sua origem para uma grande metrópole, achando que aqui eu resolveria meus problemas de moradia. Os problemas de falta de políticas públicas, né?
Mas chegando em São Paulo, eu me deparo com outro Brasil. Infelizmente, nós temos um choque cultural muito grande e o que deveria nos unir – que é essa riqueza folclórica, da nossa cultura, das nossas regiões – ao contrário, nos separa. Me sentia uma refugiada no meu próprio país. Dormi nas ruas de São Paulo, depois fui para um albergue e do albergue eu conheci o Movimento Moradia. Desde então, quando fui para essa reunião do Movimento Moradia, eu não saí mais.
Percebi que estando aqui ou em qualquer outro lugar, o meu problema era um problema de todos: o problema do pertencimento, da falta efetiva de políticas públicas. Hoje nós temos cinco prédios ocupados na região central de São Paulo. A primeira ocupação em prédio que nós fizemos foi em 1997, com a justificativa de que não era justo o trabalhador de menor renda morar em bairros bem distantes da cidade – a ponto de serem a periferia da periferia – passar três horas ou mais dentro do transporte público e mal, né? Fazendo trocas, pedágios entre ônibus para o trem, de trem para metrô, de metrô para ônibus nessa loucura, quando nós tínhamos uma cidade abandonada e vazia.
Então, resolvemos ocupar. De lá para cá, já há quase 30 anos, a gente vem ocupando vários prédios. O MSTC já tirou mais de 3.000 pessoas das áreas vulneráveis, de risco, que já estão em suas moradias definitivas. Hoje nós temos 5 ocupações na região central, um retrofit também na região central, que é o antigo Hotel Cambridge. Estamos próximos de inaugurar a obra, irão morar 121 famílias que já foram ocupantes do edifício.
A nossa participação efetiva dentro da região central de São Paulo é justamente o direito à cidade. A gente não aceita uma cidade vazia, com déficit habitacional de quase 400.000, com mais de 400.000 imóveis vazios e abandonados. O direito à cidade é coletivo e é por isso que a gente luta. Hoje nós temos a Ocupação 9 de julho que virou um símbolo internacional, onde atuamos com redes de cultura, saúde e educação com a vizinhança e onde temos de fato uma simbologia efetiva de que morar é ocupar, ocupar é se dedicar a fazer várias atividades, é dar uma função social, geopolítica e participação efetiva dentro da cidade.
Sou mãe de 8 filhos, infelizmente, agora de 7… recentemente uma faleceu. Sou conselheira estadual de habitação, sou conselheira do CONDEPE, sou conselheira das quadras 37 e 38 – mais conhecida como Cracolândia. Fui conselheira de habitação, por dois biênios, das ruas para a participação efetiva e descentralização do poder público.
LAB: Primeiramente, queria dizer que sentimos muito pela tua perda, Carmen. Acho que já podemos passar para as primeiras perguntas: como surgiu a ocupação 9 de julho? Como acontece a pesquisa das dívidas de IPTU e como as pessoas que estão lá hoje chegaram ao movimento?
CARMEN: A ocupação 9 de julho foi a primeira, (feita) em novembro de 1997. As pessoas falavam muito dos mutirões, ainda remanescentes da Erundina, de autogestão, né? Mas nós tínhamos uma cidade, um centro totalmente abandonado. Muitos edifícios comerciais, de moradia e uma grande parte de prédios públicos abandonados.
Quando comecei na reunião do movimento, a gente chega lá pela necessidade mas logo percebe como mulher, acima de tudo – somos contestadoras, mobilizadoras. Eu via essa cidade vazia e me questionava, questionava a todos do meu lado: por que a gente tem que morar tão longe, trabalhar para construir moradia quando a gente já tem uma cidade pronta, quando temos tantos prédios abandonados?
Participando de vários seminários e encontros, tomamos a decisão junto com vários movimentos de fazer uma ocupação na região central de São Paulo, ali na avenida 9 de julho, 584, que foi o prédio do INSS, hoje conhecida como Ocupação 9 de julho. Dali, de 1997 até 2003, a gente morou. Saímos em 2003 com a promessa de voltar para ele totalmente retrofitado.
Salve engano, de lá para cá, fizemos mais 3 reocupações. Em 2016, resolvemos reocupar com uma outra perspectiva, já temos a ciência de que só a atuação em rede é que dá certo. Então, ocupamos a 9 de julho com assessoria técnica, com a nossa própria ATHIS – que é a Assessoria Técnica de Habitação de Interesse Social – chamamos o engenheiro para fazer um laudo estrutural e ocupamos com a cultura, a saúde e a educação. Esses são os principais eixos.
A 9 de julho tem se tornado uma ocupação símbolo, todas as pessoas passam para verificar como é a nossa atuação em redes, porque nossa atuação é coletiva e horizontal. É importante a gente ter esse sentido horizontal, não virem as coisas de cima para baixo. Todas as decisões são tomadas em assembleia; tudo que nós fazemos, comunicamos aos parceiros.
Nós temos um grupo de mediação de conflitos em que são os próprios moradores os mediadores. Temos assistentes sociais, temos uma vinculação muito grande com as crianças e, acima de tudo, nosso maior critério é a participação. Em tudo que fazemos, exigimos uma devolutiva: que os pais deem uma devolutiva para as crianças, assim como as crianças também deem uma devolutiva. Acho que nosso maior símbolo é a troca de saberes, a tecnologia social que é aplicada na 9 de julho.
A busca pelo prédio nós fazemos pelo tempo que ele está abandonado e obviamente procuramos o cartório de registro de imóveis. Fazemos uma busca, quem é o proprietário, se é devedor de IPTU. Procuramos fazer já essa busca no cartório porque quando ocupamos, a primeira coisa que nós queremos é sermos citados por um juiz, porque lá apresentamos os recursos, a nossa defesa e porque nós ocupamos. Ocupar é um ato de resistência, ocupar não é crime, ocupar não é invadir. Tem uma grande diferença entre invadir e ocupar.
LAB: Vocês contam com alguma consultoria nessa pesquisa nos cartórios ou ela é feita pelos próprios moradores?
CARMEN: Nosso movimento tem um setor jurídico, nós temos um setor contábil e os nossos técnicos. Então, sempre que precisamos fazer alguma busca em cartório, acionamos o nosso corpo jurídico ou a gente mesmo pode ir no cartório, pagar uma taxa e lá o cartório fornece a certidão.
LAB: Nós sabemos que a administração da ocupação é feita pelos próprios moradores. Gostaríamos que tu contasses como se dá essa relação da tomada de decisões e quais são as ações educativas que vocês desenvolvem. Sabemos que tem a horta comunitária, a cozinha da ocupação e também tem ações colaborativas. Que tipos de ações foram realizadas em 2020, durante a pandemia?
CARMEN: O movimento tem um corpo orgânico, um corpo diretivo, uma coordenação geral e de lá vêm os seus membros. Temos os coordenadores que vamos formando, os coordenadores de base. Esses coordenadores de base são aqueles que fazem reuniões com as pessoas que estão ingressando no movimento, daí a gente vai tirando algumas comissões. Quando pretendemos fazer alguma ocupação, ocupamos com comissões.
Tem a comissão de portaria, de manutenção, de cozinha, a que vai ficar com as crianças. Quando entramos no prédio com um certo número de famílias, já fizemos uma reunião antes. A família não entra nua e crua, ela já está de mais ou menos de seis meses a um ano participando efetivamente do movimento. Já entramos com essas comissões formadas.
Chegando lá, tem famílias que vão ocupar – porque o critério do movimento é participação – mas não vão para morar e (para) aqueles que vão morar, a gente vai deliberando as funções. Tiramos os coordenadores que vão ficar e a mediação provisória que vai fazendo uma rotatividade. Então, com o tempo, você vai conhecendo e vendo quais são as pessoas que têm aptidões para liderar, para o comando, para estar ali dentro de uma coordenação. É assim que a gente age, é sempre procurando formar mais lideranças que sejam capazes de coordenar o trabalho interno das ocupações
O movimento tem um regimento interno que diz respeito ao convívio nas ocupações, todas as decisões são feitas em assembleia: temos as assembleias internas, assim como temos a geral do movimento. Nessa assembleia geral, todo o movimento toma as decisões e cada um vai aplicando nas ocupações, nos grupos que coordenam.
Nós temos várias ações, de fato, dentro da 9 de julho, assim como em todo o movimento. Temos várias palestras, principalmente de gênero, temos avaliação de conjuntura, temas de juventude e criança, oficinas de arte e brinquedoteca, escolinha, reforço escolar.
Nós temos pré-vestibular e parcerias com universidades, com escolas técnicas e de arquitetura, com faculdades para vestibular para os adultos e jovens. Temos vários cursos: de confeitaria, de gastronomia, de arte e educação, temos várias ações. A cozinha da 9 de julho tinha um almoço mensal que era presencial, com a pandemia esse almoço infelizmente nós tivemos que (suspender), cumprindo regras da OMS. Não somos negacionistas, então, temos hoje o delivery e estamos voltando aos poucos com o almoço presencial, com número limitado de pessoas.
Para cada marmita vendida, vão mais duas para a comunidade vulnerável, já são ações da pandemia. Compreendemos que no centro de São Paulo todo mundo traz marmita para o morador em situação de rua, mas a gente preferiu levar para uma comunidade vulnerável, fazer um almoço de domingo. Nossos almoços são sempre com chefes de cozinha renomados. A gente quis prover um almoço para a comunidade, então, toda semana doamos 300 marmitas. Do mesmo jeito que é vendido, é o mesmo almoço que vai também para a comunidade.
Em março de 2020, nós tivemos uma grande preocupação com a pandemia. Nossas pessoas são a nossa linha de frente, é quem trabalha. São as mulheres que fazem faxina, as enfermeiras, os motoristas, as pessoas de obra, as que têm seus trabalhos remunerados e que se viram atingidas. Nós criamos a Casa Verbo com o intuito de formação, de capacitar lideranças, mas com a pandemia nós nos vimos obrigados a criar o pacto solidário com a cidade para que a gente pudesse levar comida à mesa dessas pessoas.
Foi uma campanha tão grande que nós entramos junto com alguns parceiros da sociedade civil, com bancos. A princípio pensamos que seria só para as 5 ocupações, mas acabamos aderindo a 140 comunidades em toda a grande São Paulo. Alimentamos quase 60.000 pessoas durante 3 meses. Também entramos com um projeto de trabalho de costura de máscaras na pandemia, de março a agosto de 2020 empregamos 86 mulheres na costura e de lá pra cá vem tendo ações, não parou.
Nós fazemos parte da Sociedade Solidária, em que a prefeitura também faz doações de cesta básica e terminamos também sendo um polo de vacinação da gripe. Fazemos parceria com a Unidade Básica de Saúde (UBS) aqui da região que nos atende e todas as nossas famílias são atendidas pela UBS dentro das ocupações. É criando esses laços, essas parcerias, essa atuação em redes que a gente age.
LAB: Incrível como a sociedade civil mobilizada consegue fazer grandes coisas, grandes ações. Vamos à terceira pergunta: estamos vivendo uma crise climática, né? Em São Paulo, vocês estão lidando com dias excessivamente frios e aqui em Belém lidamos com ondas de calor muito intensas e alagamentos que fazem as pessoas perderem suas casas, seus bens. Queríamos saber: como você acha que a ocupação desses edifícios pode contribuir para garantir o acesso à habitação segura para as pessoas frente aos desafios futuros da crise?
CARMEN: Para manter a moradia segura para as pessoas, é (preciso) justamente ocupar esses prédios que já estão construídos e não mais agredir a natureza mandando as pessoas para as várzeas e para as áreas de mananciais, que é o que as cidades fazem. Isso acontece aqui, acontece aí, deixa o centro urbano vazio para especular e as pessoas vão se virando, agredindo, desmatando, fazendo casas na beira das nascentes, na beira dos córregos e jogando lixo.
O que nós temos que fazer realmente é ocupar o que já está construído. O Brasil tem uma prática de construir estradas, botar o asfalto em cima dos rios. Infelizmente, a crise que nós estamos vivendo, o desmatamento, a crise da água, isso vai acontecer por conta da ganância. Nós temos um país que adotou um sistema neoliberal, que é o sistema da exploração sem repor, sem ter nenhuma conduta com a natureza.
Não adianta a gente querer tapar o sol com a peneira e aí é até pior porque vocês tem a questão do garimpo. Aqui o que nós temos mais próximo de garimpagem, na região Sudeste, é a Vale do Rio Doce acabando com Minas Gerais. Mas isso é o que nós temos que fazer, ainda ter as práticas ancestrais. Na questão da alimentação, é plantarmos o nosso próprio alimento, é ainda conseguirmos repor e conseguirmos também acabar com resíduos. Nós somos grandes condutores de resíduos, formadores de resíduos, então, o que nós estamos fazendo aqui são práticas simples de plantio de horta, de pegar resíduos e ensinar a população. É o que nós temos que fazer.
Temos governantes que não têm nenhuma responsabilidade com o meio ambiente. Em 2030, quem viver verá. Será que nós iremos cumprir os ODS?
LAB: Carmen, te agradecemos muito por tu teres falado conosco!
Transcrição e Edição por: Ana Luiza Souza – Voluntária no Projeto Belém 40º do Laboratório da Cidade.
Transcrição da entrevista dada ao PodCast Papo da Cidade para o Projeto Belém 40º, realizado pelo Laboratório da Cidade em conjunto com o Instituto Clima e Sociedade (iCS).