A cidade da mulher invisível: a mulher negra e os serviços essenciais.

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Autora: Nayara Jinknss, 2019.

Em tempos de restrição e isolamento, questões como a mobilidade na cidade ganham outro formato. Não há dúvidas de que, em breve, viveremos em uma cidade transformada, onde tudo ganha um novo valor e sentido, e no presente-futuro somos e seremos os e as sobreviventes da pandemia.

De repente nos vimos inertes dentro da segurança de nossas casas, mas isso não foi assim para todos. Existe uma pessoa que esteve transitando por essa cidade o tempo todo e não tem a oportunidade de cuidar de si e dos seus dentro deste cenário; ela percorreu seu caminho dentro de ônibus, vans ou mesmo a pé nas ruas e esquinas do centro e das periferias.

E, por isso, quero te (re)apresentar a pessoa invisível, que continuou ocupando o meio urbano; quero falar sobre a mulher negra e sua vida em Belém, e também sobre o motivo de pensarmos em gênero e raça para entendermos o acesso à cidade para mulheres dentro do contexto da pandemia.

Relembro o decreto de nosso Estado, em meados de maio, que permitiu que o serviço doméstico voltasse à ativa por ser considerado serviço essencial, esquecendo (ou fingindo não saber) que esse serviço é feito por mãos únicas. Chamo-os a analisar não as exceções, mas sim as regras, observando a face que tem esse serviço, pois ele tem rosto, o rosto de uma mulher, uma mulher negra.

Segundo o IBGE, existem mais de 6 milhões de pessoas que exercem  trabalhos domésticos, das quais 92% são mulheres e, dessas, 4 milhões são negras. Além disso, cerca de 80% das pessoas que exercem trabalho doméstico não possuem carteira assinada. Esses dados nos fazem entender qual caminho as políticas públicas emergenciais tomam e a quem elas querem (des)proteger.

Arrisco dizer que a cidade da pandemia é perigosa e insegura, insalubre e inimiga, e aquele conceito de cidade comunitária e coletiva dá lugar a um – ainda que de forma temporária – conceito diferente e inverso.

Essa mesma reflexão nos aponta de forma crua a quem é permitido arriscar sua vida, escancara a desigualdade social e a sobrecarga das mulheres periféricas, juntando tudo isso à necessidade de sobrevivência.

Nesse contexto, podemos citar a dificuldade do alcance de algumas políticas públicas. Destaco que nem todas as mulheres negras puderam receber o auxílio emergencial, prova disso foram as enormes filas e reclamações nas portas dos bancos, enquanto pessoas privilegiadas, em seus carros, passavam filmando para dizer o quanto era absurdo todas aquelas pessoas em fila.

Tudo é notícia. Expor essas pessoas faz parte do apontar quem está errado pelo “descumprimento” do isolamento social em Belém. Há de se colocar a culpa na pessoa negra e pobre. Além disso, não se pensou que essa mulher negra tem família, e há grande probabilidade dela ser a chefe dessa família e ter que resolver todos os problemas dentro do lar; isso sem falarmos em um possível cenário de violência doméstica e da falta de apoio familiar para ficar com seus filhos ou dependentes, entre outras questões sociais. Alguém pensou nisso antes de filmar as pessoas no fila do banco ou de liberar dos serviços suas empregadas domésticas?

Vejam onde essas águas começam a desembocar. Dentro do mesmo âmbito, lembro que a mulher negra foi a primeira vítima do COVID-19 no Brasil, tendo sido infectada exatamente por exercer trabalho doméstico no início da pandemia.

Paralelamente, em outra parte do mundo, manifestos pela proteção de vidas negras são estampados e aqui, mais uma vez, uma empregada doméstica sofre. Dessa vez perdendo seu filho, Miguel, de 5 anos, que morreu por culpa da patroa, uma pessoa branca, que antes de chegar nos lugares como pessoa, chega como nome e sobrenome, parte da elite política que não podia ficar sem os serviços durante o isolamento.

É nessa política instaurada na cidade que quero chegar, na política para a mulher negra invisível. Em um contexto histórico de estudo, fala-se muito que foi tirado da mulher negra a “feminilidade”, ou seja, o seu “ser mulher”, e isso é exemplificado perfeitamente por Sojourner Truth; agora, quando todos querem estar recolhidos, o corpo negro sai às ruas e, ao mesmo tempo, a cidade que rechaçava esse corpo não só permite mas obriga esse corpo a transitar na cidade, agora insegura e inóspita.

Para essas políticas, esse corpo não é visto, ele é força braçal, e “ai da empregada” que disser que não pode ir fazer a diária, ela não é vista como humana, ela nem tem o direito de dizer não.

Hoje temos uma releitura do pensamento de Sojourner. A mulher invisível na cidade realiza serviços domésticos e, a partir daí, podemos identificar gênero, raça e classe num só panorama. Dentro de vários pedidos de proteção à mulher, a mulher negra não é uma mulher?

O que esses casos têm em comum? Racismo! A reafirmação de que vidas negras importam, mas não aqui, não nesse país, não dentro da política patronal que permite, através de decretos e atos políticos, o trabalho das mulheres negras domésticas, enquanto filhas de militares e empresários ricos recebem o auxílio emergencial destinado a pessoas pobres; digo mais: são ladras e ladrões das medidas assistenciais para essas mulheres negras, que, por inversão da pauta de importância, têm que se submeter a risco de morte, já que, para alguns, podem sim arriscar suas vidas para trabalhar.

Essas vidas só importam dentro de hashtags e do modismo, pois a realidade da vida de mulheres negras continua a não sofrer mudanças. Se essas políticas não são de extermínio, eu não sei do que se tratam.

Tive o desprazer de ouvir várias pessoas dizendo que a pessoa de quem sentiram mais falta foi da empregada doméstica. Num mesmo contexto, vi uma postagem na live do governador de uma mulher branca perguntando se a empregada já poderia ir trabalhar. Vidas negras realmente importam dentro desse Estado?

Não há dúvidas de que a pandemia expõe também uma cidade a partir do interesse de grupos dominantes, e não viabiliza medidas dentro de periferias e realidades que já têm a vulnerabilidade como característica.

A cidade é coletiva, mas hoje as trocas realizadas dentro da cidade não podem ser lidas como iguais quando um está seguro e o outro se arrisca.

Quem queremos proteger na cidade?

Vocês já sabem a resposta.

Referências

O coronavírus e o direito à cidade dos pobres – CartaCapital

Diante da pandemia, mães se desdobram ainda mais para dar conta de família e trabalho

Coronavírus e o apartheid social do trabalho doméstico

Por Karla Furtado. Advogada, Sócia do escritório feminista Moura, Cunha & Furtado Advogadas Associadas, voluntária na ONG Ame o Tucunduba e Laboratório da Cidade.

Artigo revisado e editado por Toni Moraes – Monomito Editorial para Laboratório da Cidade.

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